Des.
Ricardo Dip
A muitos, hoje em dia, soam como novidades os
termos “ativismo” e “garantismo”. Um inquérito mais detido, no entanto, permite
apurar que seus objetos de conceito possuem um status histórico que, para ficar em um só exemplo gráfico, poderia
vincar-se na Retórica de Aristóteles,
o que nos reporta ao século IV a.C.
Em um breve acercamento desses conceitos −tal como
eles, de modo predominante, são referidos em nossos tempos−, vê-se que o núcleo
diferencial entre o “ativismo” e o “garantismo” está na afirmação ou na
negativa da adstrição dos juízes (melhor dizendo, sobretudo dos juízes, mas não
só deles) a uma norma posta com precedência ao caso, em primeiro plano, uma norma
escrita, embora não se descarte a norma costumeira. Esse tema, exatamente, já
fora versado na Retórica de
Aristóteles:
“Pois
muito especialmente corresponde às leis bem dispostas tudo determinar por si,
enquanto seja possível, deixando aos que julgam o menos possível; em primeiro
lugar, porque é mais fácil escolher um ou poucos que muitos de bom sentido e
capazes de legislar e julgar. Depois, porque as leis se fazem depois de muito
tempo de deliberar, ao passo que os juízos são de improviso, de maneira que é
difícil que os juízes atribuam bem o justo e conveniente. E, sobretudo, porque
o juízo do legislador não é sobre o particular, mas para o futuro e o geral,
[ao passo que] o juiz julga acerca de coisas presentes e definidas, frente às
quais cabe já a amizade e o ódio (…)” (Bkk. 1354 b).
Essa passagem da Retórica aristotélica inaugurou uma solução
que se pode afirmar clássica acerca do embate entre essas realidades que, na
linguagem de nossos dias, se têm designado preferencialmente com os termos “ativismo”
e “garantismo”. Para confirmar esse classicismo da lição de Aristóteles bastaria
aqui referir ao fato de que, passados 15 séculos desde essa lição, abonou-a de
modo expresso S.Tomás de Aquino na Suma
Teológica, Ia-IIae., q. 95, art.
1º, ad secundum:
“Como
disse o Filósofo, ‘melhor é que todas as coisas estão reguladas pela lei do que
deixá-las ao arbítrio dos juízes’. Em primeiro lugar, porque é mais fácil
encontrar uns poucos sábios que bastem para instituir leis justas do que os
muitos que se demandariam para julgar retamente em cada caso particular. Em
segundo lugar, porque os legisladores consideram durante muito tempo o que há
de impor a lei, ao passo que os juízos dos fatos particulares se formulam em
casos que ocorrem subitamente; e o homem pode ver mais facilmente o que é reto
depois de considerar muitos casos do que apenas depois do estudo de um. E, por
último, porque os legisladores julgam no universal e sobre fatos futuros, ao
passo que os homens que presidem nos juízos julgam de assuntos presentes,
assuntos nos quais estão afetados pelo amor, pelo ódio ou qualquer outra
paixão; e assim se falseiam os juízos.
Desse
modo, como a justiça vivente do juiz não se encontra em muitas pessoas e, além
disso, é muito flexível, impõe-se a necessidade, sempre que seja possível, de
instituir uma lei que determine como se há de julgar, e de deixar pouquíssimos
assuntos à decisão dos homens” − paucissima
arbitrio hominum commitere.
2. Todavia, o fato de
reconhecer-se já uma solução clássica sobre a disputa entre o que, hoje, estão
a designar-se “ativismo” e “garantismo” não significa a superação da
recorrência conflitiva entre posições que, ao largo do tempo, se lançaram numa
ou noutra dessas duas linhas (tomadas aqui em seu gênero, isto é, com abstração
dos matizes com que suas espécies poderiam considerar-se).
Essa recorrência pode
aqui ilustrar-se, de maneira impressiva, com a polêmica instaurada na
Hispanidade, no século passado, entre Álvaro D’Ors e Francisco Elías de Tejada.
Aquele, um consagrado romanista; Elías de Tejada, um dos maiores jusfilósofos
da centúria (em que pese ao silêncio que tantos devotam à sua profunda e
estendida obra).
A sintética frase com
que D’Ors tomou posição nessa pugna tantas vezes secular é fartamente
conhecida: “(…) dónde no pueden intervenir jueces, no hay
tampoco derecho. De ahí que podamos definir el derecho como ‘aquello que aprueban los
jueces’” (Una
introducción al estudio del derecho. 4. ed. Madri: Rialp, 1979, p. 30).
Elías de Tejada não
poupou palavras: viu na sentença orsiana traços de fenomenologismo (que aponta
mesmo chegar às fronteiras do empirismo) e de uma priorização da eficácia, acusando
nessa asserção de D’Ors o influxo do protestantismo em geral e, nomeadamente,
do pensamento de Calvino, esse que foi o expoente máximo do voluntarismo e que
alçou a arte jurídica, nutrida argumentos teológicos, a um plano de
superioridade em relação à ciência e à filosofia do Direito. Diz Tejada:
“(…)
para Álvaro D’Ors, el Derecho solamente
puede ser tomado desde el lado positivista de la decisión de los jueces,
eliminando cualquier planteamiento metafísico. Para él no hay más Derecho que
la decisión de los jueces. No caben razonamientos de lo injusto o de lo justo.
El Derecho es sin más mero hecho: la decisión judicial. Igual que Juan Calvino,
equipara al Derecho con el juicio: el ‘ius’ es el objeto, pero también es el
resultado del ‘judicium’. (…) ‘Derecho es aquello que aprueban los jueces’,
excluído todo juício de valoración ética objetiva, porque la injusticia posible
no depende del contenido de la decisión judicial en sí, sino del hecho formal
de que sea anulado por otro juez superior” (Tratado de filosofía del derecho. Sevilha: Universidad de Sevilla,
1977, tomo II, p. 144).
Daí que, nessa visão
orsiana, prossegue a demolidora crítica de Tejada, o direito seja apenas “lo eficaz, lo vigente, sea o no justo”
(p. 144), uma simples técnica judicial: “la
técnica del juicio delante del juez” (p. 145), reduzindo-se o saber
objetivo do justo à mera “eficácia
artística de los prudentes”. É assim, continua Tejada, que a posição
orsiana destrói a segurança jurídica e a justiça:
“Destruye la seguridad porque el relativismo
de la opinión subjetiva de cada juez lleva a concluir que existirán tantos
Derechos como opiniones subjetivas de jueces haya. Destruye la justicia porque
la confunde con la prudencia judicial, siendo así que la prudencia perfecciona
al agente, mientras la justicia es la virtud social por excelencia” (p.
145).
Daí que, se certo
fosse o entendimento de D’Ors, estaríamos fadados, sentencia Tejada, ao
“(…)
más desesperante y desesperado de los
relativismos; habría tantos Derechos como jueces, y la justicia, perdida su
necesaria objetividad, cambiaría de juez a juez y de circunstancia a
circunstancia” (p. 145).
Esse voluntarismo
exagerado de D’Ors (Tejada fala de um “extremoso
voluntarismo”) −pese embora que não haja faltado quem buscasse, infrutuoso, alguma sua
compreensão mitigante (e, acaso, mais piedosa: nesse sentido, minha pequena palestra
“Prudencia y Imprudencia Judicial:
Tradición y Revolución”, proferida, em 2003, na Faculdade de Direito da
Universidade Católica Argentina, em Buenos Aires)− rematará, ainda mais exacerbado, nas correntes niilistas atuais, incluídas as não de todo conscientes da correlata agnosia do
justo.
3. O exercício de
meros decisionismo e situacionismo judiciários acarreta, de fato, o que Allain
Peyreffite designou justice-loterie (“Le
chevaux du lac Ladoga”, in De la France.
Paris: Omnibus, Paris, 1992, p. 594), levando-nos ao campo de uma hermenêutica arbitrária
−a abranger uma
complexa rede de liberdades dos tribunais (liberdade ética, liberdade
epistemológica, etc.) que, tendentes ao que se designou hermeneutisme (Yvan Élissalde, Michel Villey), correm o grave risco
de desaguarem num mero construcionismo judicial (e, por outro ângulo, na
desconstrução da objetividade), dando ensejo ao predomínio ordinário da intentio lectoris sobre a intentio operis: “Seule la main de Dieu (disse Élissalde) arrête la plume de l’interprète” (Critique de l’interprétation. Paris: Vrin, Paris, 2000).
Em nossos tempos, o ceticismo
contrafundacional pós-moderno −em muito devedor do movimento norte-americano do Critical Legal Studies e respondendo a fortes influências do
niilismo de Nietzsche, da filosofia de Heidegger e do desconstrucionismo de
Jacques Derrida− teve importante alçada com o niilismo italiano, que aqui se considerará
a titulo exemplificativo e em que desponta o pensamento de Natalino Irti,
professor da Universidade de Roma La Sapienza e autor de vários instigantes
livros −assim, entre outros, Nichilismo giuridico (2004), Il salvagente della forma
(2007) e Diritto senza verità
(2010)–, nos quais se avista e consagra uma extrema oposição ao pensamento
jurídico tradicional. Essa, de resto, é uma clave possível para a compreensão
da obra de Irti no plexo das correntes pós-modernas que se apresentam a si próprias,
observa Gary Minda, “contra as aspirações tradicionalistas de descobrir um
conceito essencial e universal de direito” −against
the traditionalists' aspiration to uncover essential and universal concepts of
law (Postmodern legal movements: Law
and jurisprudence at century’s end. Nova York: New York University Press,
1995 p. 191).
Voluntarista a outrance, Irti sustenta que o
direito está entregue “inteiramente à vontade dos homens” (per intero alla volontà degli uomini −Nichilismo giuridico, p. V), a seu
“incessante e tormentoso querer” (un
incessante e tormentoso volere), propondo uma decisão fundamental: “cada um
de nós escolhe o próprio Deus” –ciascuno di noi sceglie il proprio Dio (Diritto senza verità, p. 106). Para
Irti, não há o justo, mas apenas o interesse circunstancial, submetido à esfera
exclusiva da vontade:
“(…)
o jurista adverte que as normas singulares são e poderiam não ser; que, saídas
do nada, ao nada podem retornar. Não há um sentido firme e eterno, nem um
futuro inscrito unitário, mas a absoluta causalidade do querer” (Il giurista avverte che le singole norme
sono e potevano no essere; che, uscita dal nulla, possono ritornare nel nulla.
Non c’è un senso fermo ed eterno, né un divenire iscritto in unità, ma assoluta
causalità del volere −Nichilismo giuridico, p. VI),
de tal sorte que
“O
positivismo jurídico não está morto, mas renasceu como positividade da vontade,
que, preferindo uma outra Grundnorm,
institui seus direitos (…)” −Il positivismo giuridico non è morto, ma rinasce come positività della
volontà, che, preferendo una ad altra Grundnorm, istituisce il proprio diritto (Diritto senza verità, p. 106), e “o velho positivismo, saído quase
indene da tempestade de um século, converte-se, assim, em positividade de nosso
querer (…)” −il vecchio
positivismo, uscito quise indenne dalle tempeste di un secolo, si converte così
in positività del nostro volere (id.).
Está-se diante, pois,
de um
“direito sem destino”, um direito que “vai e vem, mas não sabe ‘por quê’, nem
‘aonde’ ir” −un diritto
senza destinazione: che va e va, ma non sa ‘perché” e ‘verso dove’ muova (Nichilismo giuridico, p. 8).
4. Esse ativismo, na medida mesma em que se
configura, essencialmente, um pronunciamento exclusivo da vontade (potência
definidamente não cognoscente), não é suscetível de controle epistêmico,
consagrando, pois, a irracionalidade fundamental de toda decisão.
Assim, em vez da teovisão clássica do
jusnaturalismo tradicional −que referia o direito, em última análise, a um
fundamento transcendente inamovível (e aí se radicam os conceitos de lei eterna
e de lei natural)−, Irti propõe o subjetivismo pleno, um fundacionalismo
relativista que desconstrói toda a objetividade possível e, em derradeiro, nega
toda a realidade se não como existente, ao menos como cognoscível, adotando uma
restrita egovisão, clausurada à vontade exclusiva do actante. Sem nenhuma
possível abertura à realidade externa ao agente, fica ele clausurado em seu próprio
centro definidamente não intencional (ou seja, sem orientação para a realidade)
e não cognoscitivo. A experiência do “justo” −um “justo” que, à partida, sequer
pode conhecer-se objetivamente no irracionalismo jurídico− torna-se uma
experiência essencialmente não comunitária; mais que isso, talvez, porque não
se trata só da negativa de toda relação intencional com a comunidade, mas, em
rigor, negado todo o acesso ao real, de uma impossibilidade até mesmo apenas de
uma intenção associativa ou de mera coisificação do outro. É que os marcos
desse irracionalismo são exaustivamente os da limitada vontade de quem age: nesse
âmbito internalizado, o mundo não se compõe de nenhum outro dialogante;
exausta-se num eu volitivo (não cognoscente); o outro não é pessoa, nem é
coisa; assim, o ego hipertrófico refuta essencialmente a intencionalidade,
exaure-se em sua própria centração.
Essa falta de abertura do ativismo
irracionalista, com a impossibilidade de seu controle epistemológico e social,
conflita com a história das instituições; quer dizer que importa, pois, também
numa superação desconstrutiva da história. Com efeito, a função que se tratou, por
primeiro, de limitar, na esfera do poder político foi a judiciária, como faz
ver esta passagem do autorizado Enrique Gil y Robles:
“(…)
hay que tener en cuenta que el supremo
arbítrio em matéria judicial se limitó mucho antes que en matéria ejecutiva y,
por exigencias racionales, siempre será más restricto, como quiera que los
intereses confiados a la magistratura, por más individuales, se consideran más
sagrados; y esta fue la causa de que el individualismo ó, mejor dicho,
personalismo medioeval tratase de garantizar antes la independencia de la
función y del organismo judiciales (…)” (Tratado de Derecho Político, tomo II, p. 669-70).
Agora, o ativismo contemporâneo reinstaura o gouvernement de juges, na conhecida
expressão de Édouard Lambert, aquilo que Gérard Timsit designou “poder
ventríloquo”, um poder que tende a falar por sua boca em lugar (e sem mínima
consideração) da lei… um poder vencido pela tentação de ser ele próprio a lei,
em vez de dizê-la, um juiz de legibus: “Subversion des pouvoirs établis.
(…) Et le pire −qui serait de voir s’installer,
dans le silence de la loi, un pouvoir ventriloque…” (Les noms de la loi. Paris: Puf, 1991, p. 196). Um poder centrado na só vontade autônoma do
decisor; é ela o umbigo do mundo, encapsulada para a experiência fraternal e
filial, para o encontro pessoal na koinonía
e com Deus.
5. O ativismo niilista põe à mostra o acerto da
sentença de Natalino Irti: “il
positivismo giuridico non è morto, ma rinasce come positività della volontà…”.
Tem razão o pensador italiano: tão essencialmente
positivista é o ativismo, quanto o é o garantismo: em ambos prevalece a vontade
−potência não cognoscitiva−, faculdade de si própria cega para inventar o suum, para encontrar a res iusta.
Mas ao passo em que o garantismo vive num mundo
institucionalizado, com um leve grau de transcendência −uma transcendência
horizontal, mas, enfim, alguma transcendência do decisor−, já o ativismo
radicaliza a intranscendência. O garantista aferra-se ao mundo do direito posto
(mormente da lei), como se nessa horizontalidade estivesse resumida e
antecipada a experiência integral do justo; supõe que as coisas da realidade
sejam construídas por normas no mais das vezes escritas, e que essas normas têm
o poder de desconstruir as realidades que lhes sejam opostas ou até ignoradas.
Por isso, não faltarão mesmo jusnaturalistas garantistas (ou posivistas, por
paradoxal que seja dizê-lo). São pessoas que se nutrem de letras e vírgulas,
entre elas pensando dissolver todas as coisas e, por elas, resolver todas as
controvérsias. Transcendência horizontal, é verdade, mas que não vai além de
ser uma imanência, em geral, com artefatos humanos (de que as leis dos homens,
tanto que determinativas, não passam de ser).
Todavia, esse positivista do normativismo, −que
agora, com admitida abstração de matizes− chamamos de “garantista”, ainda se
relaciona com um objeto exterior. Seu fundamento para a res iusta é rudimentar: o direito segue sendo uma voluntas (do legislador) e não uma ratio, mas é já algo externo e, quando
menos, suscetível de algum controle lógico de decidibilidade −por mais que
limitado à ideia de subsunção à norma.
Diversamente, o ativismo niilista é uma espécie
de autismo ético e jurídico,
enclausura o homem num mundo interior, em sua subjetividade, vedando-lhe o
acesso a toda forma de transcendência, sequer à mais rasa das horizontais.
Desse modo, o problema ético no ativismo reduz-se
ao mero juízo subjetivo autônomo do actante, vale dizer que a consciência de
quem age se torna o fundamento único da conduta, de sorte, em rigor, a não se
pôr uma regra “objetiva” da
ação, aferindo-se as condutas segundo o interesse exclusivo do agente. Por mais
seja árduo dizê-lo, algo símile desse egocentrismo regulatório é exatamente uma
das notas características das mais graves condutas antijurídicas, conforme as
autorizadas reflexões de Jean Pinatel (La
sociedad criminógena. Tradução castelhana de Luiz Rodrígues Ramos. Madri,
Aguilar, 1989, p. 80 et sqq.).
Se a moral se limita às leis ditadas pelo
próprio ego, resulta claro que se justificam todos os fins e meios escolhidos
na trilha exclusiva da imanência. Não surpreende que uma das personagens de Dostoiévski
diga com inteira lógica: “Se Deus não existe, então eu sou Deus” (Os Demônios. Tradução brasileira de
Paulo Bezerra. São Paulo: ed. 34, 2004, p. 597), porque “é um absurdo alguém
reconhecer que Deus não existe e no mesmo instante não reconhecer que é um
Deus…” (p. 599). É dizer que se passa da teovisão jusnaturalista à egovisão
niilista que é mais teologizante do que a teotropia do direito natural clássico
(exatamente porque, quanto a este, a transcendência superior não conflita com a
liberdade do actante, senão que vocaciona para um Fim, que por ser primeiro na
intenção, é Fundamento do agir livre do homem).
Se, com o positivismo normativista, se estava no
nível de um despotismo de leis prévias −e, por isso, com alguma limitação
formal−, vivendo-se como se a realidade extralegal não existisse, já com a
plenitude da autonomia do actante, com a criação autista da normatividade casuística,
atinge-se o despotismo plenário. Vive-se aí etsi
res non daretur. O mundo todo é o poder factual do agente. Vem como luva o
adágio atribuído a Lacordaire: “Entre le
faible et le fort c'est la liberté qui opprime et c'est la loi qui libère”.
6. A segurança jurídica reclama a positividade
da ordenação do direito, quer com a instituição de uma ordem política estável, quer
na relação clara e precisa das ações devidas, permitidas ou proibidas, quer
ainda na estatuição das consequências jurídicas das condutas.
Essa missão do direito positivo é a que lhe impõe
o direito natural. Sequer cabe a aplicação direta de normas naturais (incluídas
as reveladas) pela via pretoriana, porque isso implicaria afastar-se do próprio
direito natural que justifica e fundamenta as funções de garantia jurídica típicas
do direito positivo.
Resta apenas dizer que a doutrina clássica
propôs um médio superior ao positivismo judicial (é dizer, por agora, o
ativismo) e ao positivismo normativista (rectius,
numa das modalidades de nossos tempos, o garantismo).
S. Tomás de Aquino, expoente máximo do
jusnaturalismo clássico, ensinou que deve julgar-se segundo as leis escritas
(q. 60 da IIa.-IIae. da Suma Teológica):
−“necesse est quod iudicium fiat secundum
legis scripturam” (art. 5º)
−“iudicium sit ferendum secundum leges scriptas” (art. 6º).
O juízo não é outra coisa que certa definição ou
determinação do justo −definitio vel
determinatio quod iustum est (art. 5º)−, mas o justo pode ser natural ou
positivo (quer dizer, instituído mediante convenção humana: condicto inter homines), e pode dar-se
que as leis positivas se afastem do justo natural, e então não serão
verdadeiras leis, e, isto sim, corrupções delas (legis corruptiones). Além da lei iníqua −que viola o justo natural
e, por isso, injusta, não tem autoridade para obrigar (iniusta est, nec habet vim obligandi)−, outras há deficientes para
certos casos (in aliquibus casus
deficiunt), e, nessas circunstâncias, diz S.Tomás, não se deve julgar segundo
o sentido literal da lei, mas antes recorrer-se à equidade, à intenção do
legislador (recurrendum ad aequitatem,
quam intendit legislator), porque nesse quadro, em vez de aplicar a lei, “o
legislador julgaria de outra maneira; e se houvera previsto o caso, tê-lo-ia
determinado na lei” (ad tertium da q.
60).
Do garantismo −o do decisor que cumpre a lei do
soldado: “ordens são ordens” (Radbruch), qualquer seja seu conteúdo− e do
ativismo, de quem julga segundo sua própria vontade (e “autoridade que se aparta
da lei não tem valor de autoridade” −Cicero), distingue-se um médio superior
proposto pela doutrina clássica, tipo confirmado pela experiência de muitos
séculos: o do juiz equitativo que, em princípio, observa a lei escrita e a
costumeira e delas apenas se afasta quando elas se avessam da lei natural ou
quando, por deficiência da norma, não se aplicam justamente ao caso em que se
situa o objeto terminativo do direito: a res
iusta. Trata-se aí do juiz que almeja ser justo e prudente; não do juiz que
se tem por boca da lei, nem a do decisor que, ventríloquo, é mera voz do arbítrio.