CARTA ENCÍCLICA DO
PAPA PIO XII
HUMANI GENERIS
SOBRE OPINIÕES FALSAS
QUE AMEAÇAM A DOUTRINA CATÓLICA
A nossos veneráveis irmãos os
Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos e demais Ordinários locais em paz e
comunhão com a Sé Apostólica
INTRODUÇÃO
1. As dissensões e erros do gênero humano em
questões religiosas e morais têm sido sempre fonte e causa de intensa dor para
todas as pessoas de boa vontade e, principalmente, para os filhos fiéis e
sinceros da Igreja; mas, de maneira especial, o continuam sendo hoje em dia,
quando vemos combatidos até os próprios princípios da cultura cristã.
2. Não é de admirar que haja constantemente
discórdias e erros fora do redil de Cristo. Pois, embora possa realmente a
razão humana com suas forças e sua luz natural chegar de forma absoluta ao
conhecimento verdadeiro e certo de Deus, único e pessoal, que sustém e governa
o mundo com sua providência, bem como ao conhecimento da lei natural, impressa
pelo Criador em nossas almas, entretanto, não são poucos os obstáculos que
impedem a razão de fazer uso eficaz e frutuoso dessa sua capacidade natural. De
fato, as verdades que se referem a Deus e às relações entre os homens e Deus
transcendem por completo a ordem dos seres sensíveis e, quando entram na
prática da vida e a enformam, exigem o sacrifício e a abnegação própria. Ora, o
entendimento humano encontra dificuldades na aquisição de tais verdades, já
pela ação dos sentidos e da imaginação, já pelas más inclinações, nascidas do
pecado original. Isso faz com que os homens, em semelhantes questões,
facilmente se persuadam de ser falso e duvidoso o que não querem que seja
verdadeiro.
3. Por isso deve-se defender que a revelação
divina é moralmente necessária para que, mesmo no estado atual do gênero
humano, todos possam conhecer com facilidade, com firme certeza e sem nenhum
erro, as verdades religiosas e morais que não são por si inacessíveis à
razão.(1)
4. Ademais, por vezes, pode a mente humana
encontrar dificuldade mesmo para formar juízo certo sobre a credibilidade da fé
católica, não obstante os múltiplos e admiráveis indícios externos ordenados
por Deus para se poder provar certamente, por meio deles, a origem divina da
religião cristã, exclusivamente com a luz da razão. Isso ocorre porque o homem,
levado por preconceitos, ou instigado pelas paixões e pela má vontade, não só
pode negar a evidência desses sinais externos, mas também resistir às
inspirações sobrenaturais que Deus infunde em nossas almas.
I. FALSAS DOUTRINAS ATUALMENTE EM VOGA
6. As falsas afirmações de semelhante
evolucionismo pelas quais se rechaça tudo o que é absoluto, firme e imutável,
vieram abrir o caminho a uma moderna pseudofilosofia que, em concorrência
contra o idealismo, o imanentismo e o pragmatismo, foi denominada
existencialismo, porque nega as essências imutáveis das coisas e não se
preocupa mais senão com a “existência” de cada uma delas.
7. Existe igualmente um falso historicismo, que
se atém só aos acontecimentos da vida humana e, tanto no campo da filosofia
como no dos dogmas cristãos, destrói os fundamentos de toda verdade e lei
absoluta.
8. Em meio a tanta confusão de opiniões nos é de
algum consolo ao ver os que hoje, não raramente, abandonando as doutrinas do
racionalismo em que haviam sido educados, desejam voltar aos mananciais da
verdade revelada e reconhecer e professar a palavra de Deus conservada na
Sagrada Escritura como fundamento da ciência sagrada. Contudo, ao mesmo tempo,
lamentamos que não poucos desses, quanto mais firmemente aderem à palavra de
Deus, tanto mais rebaixam o valor da razão humana; e quanto mais
entusiasticamente enaltecem a autoridade de Deus revelador, tanto mais
asperamente desprezam o magistério da Igreja, instituído por nosso Senhor Jesus
Cristo para defender e interpretar as verdades reveladas. Esse modo de proceder
não só está em contradição aberta com a Sagrada Escritura, como ainda pela
experiência se mostra equívoco. Tanto é assim que os próprios “dissidentes” com
freqüência se lamentam publicamente da discórdia que entre eles reina em
questões dogmáticas, a tal ponto que se vêem obrigados a confessar a
necessidade de um magistério vivo.
II. INFILTRAÇÃO DESSES ERROS NO PENSAMENTO
CATÓLICO
9. Os teólogos e filósofos católicos, que têm o
grave encargo de defender e imprimir nas almas dos homens as verdades divinas e
humanas, não devem ignorar nem desatender essas opiniões que, mais ou menos, se
apartam do reto caminho. Pelo contrário, é necessário que as conheçam bem; pois
não se podem curar as enfermidades antes de serem bem conhecidas; ademais, nas
mesmas falsas afirmações se oculta por vezes um pouco de verdade; e, por fim,
essas opiniões falsas incitam a mente a investigar e ponderar com maior
diligência algumas verdades filosóficas ou teológicas.
10. Se nossos filósofos e teólogos somente
procurassem tirar esse fruto daquelas doutrinas, estudando-as com cautela, não
teria motivo para intervir o magistério da Igreja. Embora saibamos que os
doutores católicos em geral evitam contaminar-se com tais erros, consta-nos,
entretanto, que não faltam hoje os que, como nos tempos apostólicos, amando a
novidade mais do que o devido e também temendo que os tenham por ignorantes dos
progressos da ciência, intentam subtrair-se à direção do sagrado Magistério e,
por esse motivo, acham-se no perigo de apartar-se insensivelmente da verdade
revelada e fazer cair a outros consigo no erra.
11. Existe também outro perigo, que é tanto mais
grave quanto se oculta sob a capa de virtude. Muitos, deplorando a discórdia do
gênero humano e a confusão reinante nas inteligências dos homens e guiados por
imprudente zelo das almas, sentem-se levados por interno impulso e ardente
desejo a romper as barreiras que separam entre si as pessoas boas e honradas; e
propugnam uma espécie de “irenismo” que, passando por alto as questões que
dividem os homens, se propõe não somente a combater em união de forças contra o
ateísmo avassalaste, senão também a reconciliar opiniões contrárias, mesmo no
campo dogmático. E, como houve antigamente os que se perguntavam se a
apologética tradicional da Igreja constituía mais impedimento do que ajuda para
ganhar almas a Cristo, assim também não faltam agora os que se atreveram a
propor seriamente a dúvida de que talvez seja conveniente não só aperfeiçoar
mas também reformar completamente a teologia e o método que atualmente, com
aprovação eclesiástica, se emprega no ensino teológico, a fim de que se
propague mais eficazmente o reino de Cristo em todo o mundo, entre os homens de
todas as civilizações e de todas as opiniões religiosas.
12. Se tais propugnadores não pretendessem mais
do que acomodar, com alguma renovação, o ensino eclesiástico e seus métodos às
condições e necessidades atuais, não haveria quase nada que temer; contudo, alguns
deles, arrebatados por imprudente “irenismo”, parecem considerar como óbice
para restabelecer a unidade fraterna justamente aquilo que se fundamenta nas
próprias leis e princípios legados por Cristo e nas instituições por ele
fundadas, ou o que constitui a defesa e o sustentáculo da integridade da fé,
com a queda do qual se uniriam todas as coisas, sim, mas somente na comum
ruína.
13. Os que, ou por repreensível desejo de
novidade, ou por algum motivo louvável, propugnam essas novas opiniões, nem
sempre as propõem com a mesma intensidade, nem com a mesma clareza, nem com
idênticos termos, nem sempre com unanimidade de pareceres; o que hoje ensinam
alguns mais encobertamente, com certas cautelas e distinções, outros mais
audazes propalarão amanhã abertamente e sem limitações, com escândalo de
muitos, em especial do clero jovem, e com detrimento da autoridade
eclesiástica. Mais cautelosamente é costume tratar dessas matérias nos livros
que são postos à publicidade, já com maior liberdade se fala nos folhetos
distribuídos privadamente e nas conferências e reuniões. E não se divulgam
somente estas doutrinas entre os membros de um e outro clero, nos seminários e
institutos religiosos, mas também entre os seculares, principalmente aqueles
que se dedicam ao ensino da juventude.
III. CONSEQÜÊNCIAS
1. Desprezo da teologia escolástica
14. Quanto à teologia, o que alguns pretendem é
diminuir o mais possível o significado dos dogmas e libertá-los da maneira de
exprimi-los já tradicional na Igreja, e dos conceitos filosóficos usados pelos
doutores católicos, a fim de voltar, na exposição da doutrina católica, às
expressões empregadas pela Sagrada Escritura e pelos santos Padres. Esperam
que, desse modo, o dogma, despojado de elementos que chamam extrínsecos à revelação
divina, possa comparar-se frutuosamente com as opiniões dogmáticas dos que
estão separados da unidade da Igreja, e que, por esse caminho, se chegue pouco
a pouco à assimilação do dogma católico e das opiniões dos dissidentes.
15. Reduzindo a doutrina católica a tais
condições, crêem que se abre também o caminho para obter, segundo exigem as
necessidades atuais, que o dogma seja formulado com as categorias da filosofia
moderna, quer se trate do imanentismo, ou do idealismo, ou do existencialismo,
ou de qualquer outro sistema. Alguns mais audazes afirmam que isso se pode e se
deve fazer também em virtude de que, segundo eles, os mistérios da fé nunca se
podem expressar por conceitos plenamente verdadeiros, mas só por conceitos
aproximativos e que mudam continuamente, por meio dos quais a verdade se
indica, é certo, mas também necessariamente se desfigura. Por isso não pensam
ser absurdo, mas antes, pelo contrário, crêem ser de todo necessário que a
teologia, conforme os diversos sistemas filosóficos que no decurso do tempo lhe
servem de instrumento, vá substituindo os antigos conceitos por outros novos;
de sorte que, de maneiras diversas e até certo ponto opostas, porém, segundo
eles, equivalentes, faça humanas aquelas verdades divinas. Acrescentam que a história
dos dogmas consiste em expor as várias formas que sucessivamente foi tomando a
verdade revelada, de acordo com as várias doutrinas e opiniões que através dos
séculos foram aparecendo.
16. Pelo que foi dito é evidente que tais
esforços não somente levam ao relativismo dogmático, mas já de fato o contém,
pois o desprezo da doutrina tradicional e de sua terminologia favorece tal
relativismo e o fomenta. Ninguém ignora que os termos empregados, tanto no
ensino da teologia como pelo próprio magistério da Igreja, para expressar tais
conceitos podem ser aperfeiçoados e enriquecidos. É sabido também que a Igreja
não foi sempre constante no uso dos mesmos termos. Ademais, é evidente que a
Igreja não se pode ligar a qualquer efêmero sistema filosófico; entretanto, as
noções e os termos que os doutores católicos, com geral aprovação, foram
compondo durante o espaço de vários séculos para chegar a obter alguma
inteligência do dogma não se assentam, sem dúvida, sobre bases tão
escorregadias. Fundam-se realmente em princípios e noções deduzidas do
verdadeiro conhecimento das coisas criadas; dedução realizada à luz da verdade
revelada, que, por meio da Igreja, iluminava, como uma estrela, a mente humana.
Por isso, não há que admirar terem sido algumas dessas noções não só empregadas
mas também sancionadas por concílios ecumênicos; de sorte que não é lícito
apartar-se delas.
17. Abandonar, pois, ou repelir, ou negar valor
a tantas e tão importantes noções e expressões que homens de talento e
santidade não comuns, com esforço multissecular, sob a vigilância do sagrado
magistério e com a luz e guia do Espírito Santo, conceberam, expressaram e
aperfeiçoaram para exprimir as verdades da fé cada vez com maior exatidão, e
substituí-las por noções hipotéticas e expressões flutuantes e vagas de uma
filosofia moderna que, assim como a flor do campo, hoje existe e amanhã cairá,
não só é de suma imprudência, mas também converte o dogma numa cana agitada
pelo vento. O desprezo dos termos e noções que os teólogos escolásticos costumam
empregar leva naturalmente a abalar a teologia especulativa, a qual, por
fundar-se em razões teológicas, eles julgam carecer de verdadeira certeza.
2. Desprezo do magistério da Igreja
18. Desgraçamente, esses amigos de novidades
facilmente passam do desprezo da teologia escolástica ao pouco caso e até mesmo
ao desprezo do próprio magistério da Igreja, que tanto prestígio tem dado com a
sua autoridade àquela teologia. Apresentam este magistério como empecilho ao
progresso e obstáculo à ciência; e já existem acatólicos que o consideram como
freio injusto, que impede alguns teólogos mais cultos de renovar a teologia.
Embora este sagrado magistério, em questões de fé e moral, deva ser para todo
teólogo a norma próxima e universal da verdade (visto que a ele confiou nosso
Senhor Jesus Cristo a guarda, a defesa e a interpretação do depósito da fé, ou
seja, das Sagradas Escrituras e da Tradição divina), contudo, por vezes se
ignora, como se não existisse, a obrigação que têm todos os fiéis de fugir
mesmo daqueles erros que se aproximam mais ou menos da heresia e, portanto, de
observar também as constituições e decretos em que a Santa Sé proscreveu e
proibiu tais falsas opiniões. (2) Alguns há que de propósito desconhecem tudo
quanto os sumos pontífices expuseram nas encíclicas sobre o caráter e a
constituição da Igreja, a fim de fazer prevalecer um conceito vago, que eles
professam e dizem ter tirado dos antigos Padres, principalmente dos gregos. Os
sumos pontífices, dizem eles, não querem dirimir questões disputadas entre os
teólogos; e, assim, cumpre voltar às fontes primitivas e explicar com os
escritos dos antigos as modernas constituições e decretos do magistério.
19. Esse modo de falar pode parecer eloqüente,
mas não carece de falácia. Pois é verdade que os romanos pontífices em geral
concedem liberdade aos teólogos nas questões controvertidas entre os mais
acreditados doutores; porém, a história ensina que muitas questões que antes
eram objeto de livre discussão já não podem ser discutidas.
20. Nem se deve crer que os ensinamentos das
encíclicas não exijam, por si, assentimento, sob alegação de que os sumos
pontífices não exercem nelas o supremo poder de seu magistério. Entretanto,
tais ensinamentos provêm do magistério ordinário, para o qual valem também aquelas
palavras: “Quem vos ouve a mim ouve” (Lc 10,16); e, na maioria das vezes, o que
é proposto e inculcado nas encíclicas, já por outras razões pertence ao
patrimônio da doutrina católica. E, se os romanos pontífices em suas
constituições pronunciam de caso pensado uma sentença em matéria controvertida,
é evidente que, segundo a intenção e vontade dos mesmos pontífices, essa
questão já não pode ser tida como objeto de livre discussão entre os teólogos.
21. Também é verdade que os teólogos devem
sempre voltar às fontes da revelação; pois, a eles cabe indicar de que maneira “se
encontra, explícita ou implicitamente” na Sagrada Escritura e na divina
Tradição o que ensina o magistério vivo. Ademais, ambas as fontes da doutrina
revelada contêm tantos e tão sublimes tesouros de verdade que nunca realmente
se esgotarão. Por isso, com o estudo das fontes sagradas rejuvenescem
continuamente as sagradas ciências; ao passo que, pelo contrário, a especulação
que deixa de investigar o depósito da fé se torna estéril, como vemos pela
experiência. Entretanto, isto não autoriza a fazer da teologia, mesmo da
chamada positiva, uma ciência meramente histórica. Pois, junto com as sagradas
fontes, Deus deu à sua Igreja o magistério vivo para esclarecer também e
salientar o que no depósito da fé não se acha senão obscura e como que
implicitamente. E o divino Redentor não confiou a interpretação autêntica desse
depósito a cada um dos fiéis, nem mesmo aos teólogos, mas exclusivamente ao
magistério da Igreja. Se a Igreja exerce esse múnus (como o tem feito com
freqüência no decurso dos séculos pelo exercício, quer ordinário, quer
extraordinário desse mesmo ofício), é evidentemente falso o método que pretende
explicar o claro pelo obscuro; antes, pelo contrário, faz-se mister que todos sigam
a ordem inversa. Eis porque nosso predecessor de imortal memória, Pio IX, ao
ensinar que é dever nobilíssimo da teologia mostrar como uma doutrina definida
pela Igreja está contida nas fontes, não sem grave motivo acrescentou aquelas
palavras; “com o mesmo sentido com o qual foi definida pela Igreja”.(3)
3. Desprezo das Sagradas Escrituras
22. Voltando às novas teorias de que acima
tratamos, alguns há que propõem ou insinuam nos ânimos muitas opiniões que
diminuem a autoridade divina da Sagrada Escritura. Pois atrevem-se a adulterar
o sentido das palavras com que o concílio Vaticano define que Deus é o autor da
Sagrada Escritura, e renovam uma teoria já muitas vezes condenada, segundo a
qual a inerrância da Sagrada Escritura se estende unicamente aos textos que
tratam de Deus mesmo, ou da religião, ou da moral. Ainda mais, sem razão falam
de um sentido humano da Bíblia, sob o qual se oculta o sentido divino, que é,
segundo eles, o único infalível. Na interpretação da Sagrada Escritura não
querem levar em consideração a analogia da fé nem a tradição da Igreja; de modo
que a doutrina dos santos Padres e do Sagrado magistério deveria ser aferida
por aquela das Sagradas Escrituras explicadas pelos exegetas de modo puramente
humano; o que seria preferível a expor a sagrada Escritura conforme a mente da
Igreja, que foi constituída por nosso Senhor Jesus Cristo guarda e intérprete
de todo o depósito das verdades reveladas.
23. Além disso, o sentido literal da Sagrada
Escritura e sua exposição, que tantos e tão exímios exegetas, sob a vigilância
da Igreja, elaboraram, deve ceder lugar, segundo essas falsas opiniões, a uma
nova exegese a que chamam simbólica ou espiritual; por meio dela, os livros do
Antigo Testamento, que seriam atualmente na Igreja uma fonte fechada e oculta,
se abririam finalmente para todos. Dessa maneira, afirmam, desaparecerão todas
as dificuldades que somente encontram os que se atêm ao sentido literal das
Escrituras.
24. Todos vêem quanto se afastam essas opiniões
dos princípios e normas de hermenêutica justamente estabelecidos por nossos
predecessores de feliz memória, Leão XIII, na encíclica Providentissimus,
e Bento XV, na encíclica Spiritus Paraclitus, e também por nós mesmo, na
encíclica Divino Afflante Spiritu.
4 . Erros subseqüentes
25. E não há que admirar terem essas novidades
produzido frutos venenosos em quase todos os capítulos da teologia. Põe-se em
dúvida que a razão humana, sem o auxílio da divina revelação e da graça divina,
possa demonstrar a existência de Deus pessoal, com argumentos tirados das
coisas criadas; nega-se que o mundo tenha tido princípio e afirma-se que a
criação do mundo é necessária, pois procede da necessária liberalidade do amor
divino; nega-se também a Deus a presciência eterna e infalível das ações livres
dos homens; opiniões de todo contrárias às declarações do concílio Vaticano.(4)
26. Alguns também põem em discussão se os anjos
são pessoas; e se a matéria difere essencialmente do espírito. Outros
desvirtuam o conceito de gratuidade da ordem sobrenatural, sustentando que Deus
não pode criar seres inteligentes sem ordená-los e chamá-los à visão beatífica.
E não só isso, mas, ainda, passando por cima das definições do concílio de
Trento, destrói-se o conceito de pecado original juntamente com o de pecado em
geral, como ofensa a Deus, e também o da satisfação que Cristo ofereceu por
nós. Nem faltam os que defendem que a doutrina da transubstanciação, baseada
como está num conceito filosófico já antiquado de substância, deve ser
corrigida; de maneira que a presença real de Cristo na santíssima eucaristia se
reduza a um simbolismo, no qual as espécies consagradas não são mais do que
sinais externos da presença espiritual de Cristo e de sua união íntima com os
féis, membros seus no corpo místico.
27. Alguns não se consideram obrigados a abraçar
a doutrina que há poucos anos expusemos numa encíclica e que está fundamentada
nas fontes da revelação, segundo a qual o corpo místico de Cristo e a Igreja
católica romana são uma mesma coisa.(5) Outros reduzem a uma fórmula vã a
necessidade de pertencer à Igreja verdadeira para conseguir a salvação eterna.
E outros, malmente, não admitem o caráter racional da credibilidade da fé
cristã.
28. Sabemos que esses e outros erros semelhantes
serpenteiam entre alguns filhos nossos, desviados pelo zelo imprudente ou pela
falsa ciência; e nos vemos obrigado a repetir-lhes, com tristeza, verdades
conhecidíssimas e erros manifestos, e a indicar-lhes, não sem ansiedade, os
perigos de erro a que se expõem.
5. Desprezo da filosofia escolástica
29. É coisa sabida o quanto estima a Igreja a
humana razão, à qual compete demonstrar com certeza a existência de Deus único
e pessoal, comprovar invencivelmente os fundamentos da própria fé cristã por
meio de suas notas divinas, expressar de maneira conveniente a lei que o
Criador imprimiu nas almas dos homens, e, por fim, alcançar algum conhecimento,
por certo frutuosíssimo, dos mistérios.(6) Mas a razão somente poderá exercer
tal oficio de modo apto e seguro se tiver sido cultivada convenientemente, isto
é, se houver sido nutrida com aquela sã filosofia, que é já como que um
patrimônio herdado das precedentes gerações cristãs e que por conseguinte goza
de uma autoridade de ordem superior, porquanto o próprio Magistério da Igreja
utilizou os seus princípios e os seus fundamentais assertos, manifestados e
definidos lentamente por homens de grande talento, para comprovar a mesma
revelação divina. Essa filosofia, reconhecida e aceita pela Igreja, defende o
verdadeiro e reto valor do conhecimento humano, os inconcussos princípios
metafísicos, a saber, os da razão suficiente, causalidade e finalidade, e a
posse da verdade certa e imutável.
30. É verdade que em tal filosofia se expõem
muitas coisas que, nem direta, nem indiretamente, se referem à fé ou aos costumes,
e que, por isso mesmo, a Igreja deixa à livre disputa dos peritos; entretanto,
em outras muitas não existe tal liberdade, principalmente no que diz respeito
aos princípios e aos fundamentais assertos que há pouco recordamos. Mesmo
nessas questões fundamentais pode-se revestir a filosofia com mais aptas e
ricas vestes, reforçá-la com mais eficazes expressões, despojá-la de certos
modos escolares menos adequados, enriquecê-la com cautela com certos elementos
do progressivo pensamento humano; contudo, jamais é licito derrubá-la ou
contaminá-la com falsos princípios, ou estimá-la como um grande monumento, mas
já fora de moda. Pois a verdade e sua expressão filosófica não podem mudar com
o tempo, principalmente quando se trata dos princípios que a mente humana
conhece por si mesmos, ou daqueles juízos que se apóiam tanto na sabedoria dos
séculos como no consenso e fundamento da revelação divina. Qualquer verdade que
a mente humana, procurando com retidão, descobre não pode estar em contradição
com outra verdade já alcançada, pois Deus, verdade suprema, criou e rege a
humana inteligência, de tal modo que não opõe cada dia novas verdades às já
adquiridas, mas, apartados os erros que porventura se tiverem introduzido,
edifica a verdade sobre a verdade, de forma tão ordenada e orgânica como vemos
estar constituída a própria natureza da qual se extrai a verdade. Por esse
motivo o cristão, seja filósofo, seja teólogo, não abraça apressada e
levianamente qualquer novidade que no decurso do tempo se proponha, mas deve
sopesá-la com suma diligência e submetê-la a justo exame a fim de que não venha
perder a verdade já adquirida ou a corrompa, com grave perigo e detrimento da
mesma fé.
31. Se tudo quanto expusemos for bem
considerado, facilmente se compreenderá porque a Igreja exige que os futuros
sacerdotes sejam instruídos nas disciplinas filosóficas, segundo o
método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico,(7) visto que, através da
experiência de muitos séculos, conhece perfeitamente que o método e o sistema do
Aquinate se distinguem por seu valor singular, tanto para a educação dos jovens
quanto para a investigação das mais recônditas verdades, e que sua doutrina
está afinada como que em uníssono com a divina revelação e é eficacíssima para
assegurar os fundamentos da fé e para recolher de modo útil e seguro os frutos
do são progresso.(8)
32. E, pois, altamente deplorável que hoje em
dia desprezem alguns a filosofia que a Igreja aceitou e aprovou, e que,
imprudentemente, a tachem de antiquada em suas formas e racionalística, como
dizem, em seus processos. Pois afirmam que essa nossa filosofa defende
erroneamente a possibilidade de uma metafísica absolutamente verdadeira, ao
passo que eles sustentam, contrariamente, que as verdades, principalmente as
transcendentes, só podem ser expressas por doutrinas divergentes que mutuamente
se completam, embora pareçam opor-se entre si. Pelo que, concedem que a
filosofia ensinada em nossas escolas, com a lúcida exposição e solução dos
problemas, com a exata precisão de conceitos e com as claras distinções, pode
ser conveniente preparação ao estudo da teologia, como de fato o foi
adaptando-se perfeitamente à mentalidade medieval; crêem, porém, que não é o
método que corresponde à cultura e às necessidades modernas. Acrescentam,
ainda, que a filosofia perene é só a filosofia das essências imutáveis,
enquanto a mente moderna deve considerar a “existência” de cada um dos seres e
a vida em sua fluência contínua. E, ao desprezarem esta filosofia, enaltecem
outras, antigas ou modernas, orientais ou ocidentais, de forma tal a parecer
insinuar que toda filosofia ou doutrina opinável, com o acréscimo de algumas
correções ou complementos, se for necessário, harmonizar-se-á com o dogma
católico; o que nenhum fiel pode duvidar seja de todo falso, principalmente
quando se trata dos errôneos sistemas chamados imanentismo, ou idealismo, ou
materialismo, seja histórico, seja dialético, ou também existencialismo, tanto
no caso de defender o ateísmo, quanto no de impugnar o valor do raciocínio metafísico.
33. Por fim, acusam a filosofia ensinada em
nossas escolas do defeito de atender só à inteligência no processo do
conhecimento, sem levar em conta o papel da vontade e dos sentimentos. O que
certamente não é verdade; de fato, a filosofia cristã jamais negou a utilidade
e a eficácia das boas disposições de toda alma para conhecer e abraçar
plenamente os princípios religiosos e morais; ainda mais, sempre ensinou que a
falta de tais disposições pode ser a causa de que o entendimento, sufocado
pelas paixões e pela má vontade, se obscureça a ponto de não mais ver como
convém. E o Doutor Comum crê que o entendimento é capaz de perceber de certo
modo os mais altos bens correspondentes à ordem moral, tanto natural como
sobrenatural, enquanto experimentar no íntimo certa afetiva “conaturalidade”
com esses mesmos bens, seja ela natural, seja fruto da graça; (9) e claro está
quanto esse conhecimento, por assim dizer, subconsciente, ajuda as
investigações da razão. Porém, uma coisa é reconhecer a força dos sentimentos
para auxiliar a razão a alcançar conhecimento mais certo e mais seguro das
realidades morais, e outra o que intentam esses inovadores, isto é, atribuir às
faculdades volitiva e afetiva certo poder de intuição, e afirmar que o homem,
quando, pelo exercício da razão, não pode discernir o que deva abraçar como
verdadeiro, recorra à vontade, mediante a qual escolherá livremente entre as
opiniões opostas, com inaceitável mistura de conhecimento e de vontade.
34. Nem há que admirar se ponham em perigo, com essas
novas opiniões, as duas disciplinas filosóficas que, pela sua própria natureza,
estão estreitamente relacionadas com a doutrina católica, a saber, a teodicéia
e a ética, cuja função acreditam não seja demonstrar coisa alguma acerca de
Deus ou de qualquer outro ser transcendente, mas antes mostrar que os
ensinamentos da fé sobre Deus, ser pessoal, e seus preceitos, estão
inteiramente de acordo com as necessidades da vida e que por isso mesmo todos
devem aceitá-los para evitar a desesperação e obter a salvação eterna; tudo
isso está em oposição aberta aos documentos de nossos predecessores Leão XIII e
Pio X e não se pode conciliar com os decretos do concílio Vaticano. Não
haveria, certamente, tais desvios da verdade que deplorar se também no terreno
filosófico todos olhassem com a devida reverência ao magistério da Igreja, ao
qual compete, por divina instituição, não só custodiar e interpretar o depósito
da verdade revelada, mas também vigiar sobre as disciplinas filosóficas para
que os dogmas católicos não sofram dano algum da parte das opiniões não
corretas.
6. Erros relativos a certas ciências
positivas
35. Resta-nos agora dizer algo acerca de algumas
questões que, embora pertençam às disciplinas a que é costume chamar positivas,
entretanto, se entrelaçam mais ou menos com as verdades da fé cristã. Não
poucos rogam insistentemente que a religião católica tenha em máxima conta a
tais ciências; o que é certamente digno de louvor quando se trata de fatos na
realidade demonstrados, mas que hão de admitir-se com cautela quando se trata
de hipóteses, ainda que de algum modo apoiadas na ciência humana, que tocam a
doutrina contida na sagrada Escritura ou na tradição. Se tais conjecturas
opináveis se opõem direta ou indiretamente à doutrina que Deus revelou, então
esses postulados não se podem admitir de modo algum.
36. Por isso o magistério da Igreja não proíbe
que nas investigações e disputas entre homens doutos de ambos os campos se
trate da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano em matéria
viva preexistente (pois a fé nos obriga a reter que as almas são diretamente
criadas por Deus), segundo o estágio atual das ciências humanas e da sagrada
teologia, de modo que as razões de uma e outra opinião, isto é, dos que
defendem ou impugnam tal doutrina, sejam ponderadas e julgadas com a devida
gravidade, moderação e comedimento, contanto que todos estejam dispostos a
obedecer ao ditame da Igreja, a quem Cristo conferiu o encargo de interpretar
autenticamente as Sagradas Escrituras e de defender os dogmas da fé.(10) Porém,
certas pessoas, ultrapassam com temerária audácia essa liberdade de discussão,
agindo como se a própria origem do corpo humano a partir de matéria viva
preexistente fosse já certa e absolutamente demonstrada pelos indícios até agora
achados e pelos raciocínios neles baseados, e como se nada houvesse nas fontes
da revelação que exigisse a máxima moderação e cautela nessa matéria.
37. Mas, tratando-se de outra hipótese, isto é,
a do poligenismo, os filhos da Igreja não gozam da mesma liberdade, pois os
fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na
terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração
natural, ou, ainda, que Adão signifique o conjunto dos primeiros pais; já que não
se vê claro de que modo tal afirmação pode harmonizar-se com o que as fontes da
verdade revelada e os documentos do magistério da Igreja ensinam acerca do
pecado original, que procede do pecado verdadeiramente cometido por um só Adão
e que, transmitindo-se a todos os homens pela geração, é próprio de cada um
deles.(11)
38. Da mesma forma que nas ciências biológicas e
antropológicas, há alguns que também nas históricas ultrapassam audazmente os
limites e cautelas estabelecidos pela Igreja. De modo particular, é deplorável
a maneira extraordinariamente livre de interpretar os livros históricos do
Antigo Testamento. Os fautores dessa tendência, para defender a sua causa,
invocam indevidamente a carta que há não muito tempo a Comissão Pontifícia para
os estudos bíblicos enviou ao arcebispo de Paris.(12) Essa carta adverte
claramente que os onze primeiros capítulos do Gênesis, embora não concordem
propriamente com o método histórico usado pelos exímios historiadores
greco-latinos e modernos, não obstante, pertencem ao gênero histórico em
sentido verdadeiro, que os exegetas hão de investigar e precisar; e que os
mesmos capítulos, com estilo singelo e figurado, acomodado à mente do povo
pouco culto, contêm as verdades principais e fundamentais em que se apóia a nossa
própria salvação, bem como uma descrição popular da origem do gênero humano e
do povo escolhido. Mas, se os antigos hagiógrafos tomaram alguma coisa das
tradições populares (o que se pode certamente conceder), nunca se deve esquecer
que eles assim agiram ajudados pelo sopro da divina inspiração, a qual os
tornava imunes de todo erro ao escolher e julgar aqueles documentos.
39. Todavia, o que se inseriu na Sagrada
Escritura tirado das narrações populares, de modo algum deve comparar-se com as
mitologias e outras narrações de tal gênero, as quais procedem mais de uma
ilimitada imaginação do que daquele amor à simplicidade e à verdade que tanto
resplandece nos livros do Antigo Testamento, a tal ponto que os nossos
hagiógrafos devem ser tidos neste particular como claramente superiores aos
antigos escritores profanos.
IV. DIRETRIZES
40. Sabemos, é verdade, que a maior parte dos
doutores católicos, que com sumo proveito trabalham nas universidades, nos
seminários e nos colégios religiosos, estão muito longe desses erros que hoje
aberta e ocultamente se divulgam, ou por certo afã de novidades, ou por
imoderado desejo de apostolado. Porém, sabemos também que tais opiniões novas
podem atrair os incautos, e, por isso mesmo, preferimos nos opor aos começos a
oferecer remédio a uma enfermidade inveterada.
41. Pelo que, depois de meditar e considerar
largamente diante do Senhor, para não faltar ao nosso sagrado dever, mandamos
aos bispos e aos superiores religiosos, onerando gravissimamente suas
consciências, que com a máxima diligência procurem que, nem nas classes, nem
nas reuniões, nem em escritos de qualquer gênero, se exponham tais opiniões de
modo algum, nem aos clérigos, nem aos fiéis cristãos.
42. Saibam quantos ensinam em institutos
eclesiásticos que não poderão em consciência exercer o oficio de ensinar, que
lhes foi comado, se não receberem religiosamente as normas que temos dado e se
não as cumprirem escrupulosamente na formação dos discípulos. E procurem
infundir nas mentes e nos corações dos mesmos aquela reverência e obediência
que eles próprios em seu assíduo labor devem professar ao magistério da Igreja.
43. Esforcem-se com todo o alento e emulação por
fazer avançar as ciências que professam; mas, evitem também ultrapassar os
limites por nós estabelecidos para salvaguardar a verdade da fé e da doutrina
católica. Às novas questões que a moderna cultura e o progresso do tempo
suscitaram, apliquem sua mais diligente investigação, entretanto, com a
conveniente prudência e cautela; e, finalmente, não creiam, cedendo a um falso “irenismo”,
que os dissidentes e os que estão no erro possam ser atraídos com pleno êxito,
a não ser que a verdade íntegra que está viva na Igreja seja ensinada por todos
sinceramente, sem corrupção nem diminuição alguma.
V. CONCLUSÃO
44. Fundados nessa esperança, que vossa pastoral
solicitude ainda aumentará, concedemos, de todo o coração, como penhor dos dons
celestiais e em sinal de nossa paterna benevolência, a todos vós, veneráveis
irmãos, a vosso clero e a vosso povo, a bênção apostólica.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no
dia 12 de agosto de 1950, ano XII de nosso pontificado.
PIO PP. XII
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Notas
1. Conc. Vat. I, Const. Dei Filius de
Fide Cath., c. 2, “De revelatione”.
2. CIC,
cân.1324; cf. Conc. Vat. I, Const. Dei Filius, de Fide cath., c. 4, “De
fide et ratione”, post canones.
3. Pio IX, Inter gravissimas, de 28 de
outubro de 1870, Pio IX P.M. Acta, vol. V, p. 260.
4. Cf.
Conc.Vat. I, Const. Dei Filius de fide cath., c. l, “De Deo rerum omnium
creatore”.
5. Cf.
Carta. Enc. Mystici Corporis Christi, AAS 35(1943), p.193ss.
6. Cf. Conc.
Vat. I, Const. Dei Filius de fide cath., c. 4 “De fide et
ratione”.
7. CIC,
cân.1366, § 2.
8. AAS 38
(1946), p. 387.
9. Cf. S.
Tomás, Summa Theol, II-II, q. l, a. 4 ad 3; q. 45, a . 2, in c.
10. Cf. Aloc. Pont. aos membros da Academia das
Ciências, 30 nov 1941; AAS, 33(1941), p. 506.
11. Cf. Rm
5,12-19; Conc. Trid., sess. V, cân. l - 4.
12. Dia 16 de janeiro de 1948, AAS 40(1948), pp.
45-48.