C. N.
É inquestionável a
importância de Tertuliano (Cartago, c. 160-c. 220 d.C.) na história do Cristianismo, assim como é
inquestionável a importância do texto seu que publicamos aqui (e o fazemos tal
qual se encontra na fonte de onde o extraímos
[http://agnusdei.50webs.com/apolt0.htm], incluindo a apresentação do
responsável pelo site). Não podemos
porém deixar de assinalar que, desgraçadamente, ao final de sua vida, o grande
apologista se tornou cismático. Qualquer boa história da Igreja o mostrará.
Repita-se, porém: é
magnífico o texto que ora publicamos.
*
* *
TERTULIANO
APOLOGIA
Translated by
José Fernandes VIDAL & Luiz Fernando Karps
PASQUOTTO
Certamente esta é a obra mais importante de
Tertuliano, escrita no ano 197 e dirigida aos governantes do Império Romano.
Tertuliano nasceu em Cartago no ano 155 dC e aí exercia sua profissão de
advogado quando, em 193, converteu-se ao Cristianismo, passando a exercer
também a atividade de catequista junto à Igreja.
Sua inteligência e sólida formação jurídica foram
claramente demonstradas nesta obra, em que defende os cristãos, apelando por
seu direito de liberdade religiosa, perante o Império Romano cruel e
perseguidor. Seus argumentos são expostos de forma lógica e polêmica, visando o
convencimento das autoridades a quem é dirigida, questionando a “justiça”
aplicada contra os cristãos, transportando a apologética do terreno filosófico
para o jurídico.
“Com admirável habilidade, Tertuliano censura os
processos jurídicos, em voga, do Poder do Estado ‘gentio’ contra os cristãos: é
suficiente o crime do ‘nomem christianum’ (=nome ‘cristão’), para acarretar a
condenação. A todos os criminosos concede-se o direito de defesa; aos cristãos,
não. Àqueles, a tortura tenta arrancar uma confissão; aos cristãos, uma
apostasia. As suspeitas iníquas espalhadas contra os cristãos, Tertuliano as
repele como mentiras, expondo, em contraposição, o essencial concernente à fé
cristã e à vida das comunidades. Concluindo, declara ser o Cristianismo uma
filosofia; mas os filósofos gentios não são obrigados, como os cristãos, a
sacrificar e podem até negar os deuses impunemente. Todavia, as crueldades
gentílicas não prejudicarão os cristãos; ao contrário, ‘o sangue dos cristãos é
como semente que brota’“ (B.Altaner/A.Stuiber).
“Raramente um discurso de defesa cristão conhecera
semelhante precisão de argumentos jurídicos, semelhante rudeza de ironia,
semelhantes aspereza de lógica, onde os argumentos são desferidos como golpes
certeiros, as fórmulas marteladas, os dilemas inelutáveis, sem concessões à
posição dos poderes públicos ou dos filósofos. Para ele [Tertuliano] não basta
convencer o adversário: arrasa-o, pisa-o, humilha-o” (A.Hamman).
Agradeço aos caríssimos amigos e irmãos na fé, José
Fernandes Vidal (já falecido) (cc 1-30) e Luiz Fernando Karps Pasquotto (cc
31-35), por dedicarem voluntariamente muito de seu tempo na árdua tarefa de
tradução desta obra, para que se tornasse acessível a todos, em nossa língua,
através da Internet. Que Deus o abençoe!
* * *
·
Capítulo I - “A Verdade só deseja uma coisa dos governantes
da Terra: não ser condenada sem ser conhecida”
·
Capítulo II - “Se a lei proíbe que alguém seja condenado sem
defesa, por que este direito é negado aos cristãos?”
·
Capítulo III - “O pai, que costumava ser tão paciente, deserda
o filho, agora obediente. Constitui grave ofensa alguém reformar sua vida por
causa do nome detestável de ‘cristão’...”
·
Capítulo IV - “Vemos nossos perseguidores cometendo os mesmos
crimes de que nos acusam à luz do dia. Como também são culpados dos crimes de
que somos acusados sem sentido, são merecedores de castigo e caem no ridículo”
·
Capítulo V - “Que qualidade de leis são essas que somente os
ímpios e injustos, os vis, os sanguinários, os sem sentimentos, os insanos,
executam contra nós?”
·
Capítulo VI - “Estais sempre louvando os tempos antigos e,
contudo, a cada dia aceitais novidades em vosso modo de vida”
·
Capítulo VII - “Somos acusados de realizar um rito sagrado no
qual imolamos uma criancinha e então a comemos; e, após o banquete, praticamos
incesto e nos entregamos a nossas ímpias luxúrias na imoralidade da escuridão”
·
Capítulo VIII - “O que fazer se houver cristãos sem parentes
cristãos? Não será tido, então, por um verdadeiro seguidor de Cristo, quem não
tiver um irmão ou um filho?”
·
Capítulo IX - “As duas cegueiras caminham juntas. Aqueles que
não vêem o que acontece, pensam que vêem o que não acontece”
·
Capítulo X - “Vós nos acusais: ‘Não adorais os deuses e não
ofereceis sacrifícios aos imperadores’“
·
Capítulo XI - “Já que não ousais negar que essas vossas
divindades foram homens e deveis aceitar que foram elevadas à divindade após
sua morte, examinemos no que isso implica”
·
Capítulo XII - “Não fazemos certamente injúrias àqueles que
estamos certos de serem nulidades. O que não existe está em sua inexistência
livre do sofrimento”
·
Capítulo XIII - “Constatando que apenas adorais um ou outro
deus, certamente ofendeis àqueles que não adorais. Não podeis dar preferência a
um sem desprezar o outro, pois a seleção de um implica na rejeição do outro”
·
Capítulo XIV - “Voltando a vossos livros dos quais tirais
vossos ensinamentos de sabedoria e os nobres deveres da vida, que coisas
ridículas ali encontro...”
·
Capítulo XV - “É certamente entre os devotos de vossa religião
que sempre se encontram os perpetradores de sacrilégios; porque os cristãos não
entram em vossos templos nem mesmo durante o dia”
·
Capítulo XVII - “O objeto de nossa adoração é um Único Deus que,
por sua palavra de ordem, sua sabedoria ordenadora, seu poder Todo-Poderoso,
tirou do nada toda a matéria de nosso mundo”
·
Capítulo XVIII - “Um dia, tais coisas foram para nós, também,
tema de ridículo. Nós somos de vossa geração e natureza: os homens se tornam,
não nascem cristãos!”
·
Capítulo XIX - “Vossos próprios deuses, vossos próprios tempos,
oráculos e ritos sagrados são menos antigos do que a palavra de um único
profeta”
·
Capítulo XX - “Tudo aquilo que vos cerca, estou na vossa dianteira
anunciando. Tudo o que vos cerca e agora vedes foi previamente anunciado. Tudo
o que agora vedes já foi anteriormente predito aos ouvintes humanos”
·
Capítulo XXI - “Além da questão da idade, não concordamos com
os judeus em suas particularidades com respeito à alimentação, aos dias
sagrados, nem mesmo no seu bem conhecido sinal da circuncisão, nem no uso de um
nome comum”
·
Capítulo XXII - “Também afirmamos, com certeza, a existência de
certos seres espirituais, cujos nomes não vos são desconhecidos”
·
Capítulo XXIII - “Zombai como gostais de fazer, mas juntai-vos
aos demônios, se assim quereis, em vossas zombarias. Que eles neguem que Cristo
virá para julgar cada alma humana que já existiu”
·
Capítulo XXIV - “Se está claro que vossos deuses não existem,
não há religião, no caso. Se não existe religião, somos certamente inocentes de
qualquer ofensa contra a religião”
·
Capítulo XXV - “Mas que loucura agora é atribuir a grandeza do
nome romano aos méritos da religião, já que foi depois que Roma se tornou um
Império que a religião que ela professa promoveu seu progresso!”
·
Capítulo XXVI - “A Roma de simplicidade rural dos tempos
primitivos é mais velha do que muitos de seus deuses. Ela reinou antes que seu
orgulhoso e imenso Capitólio fosse construído”
·
Capítulo XXVII - “Porque, embora todo o poder dos demônios e maus
espíritos nos esteja sujeito, contudo, como escravos, indispostos muitas vezes,
estão cheios de medo: assim são eles também”
·
Capítulo XXVIII - “Entre vós, o povo também jura falso mais
facilmente pelo nome de todos os deuses, do que pelo nome do supremo Imperador”
·
Capítulo XXIX - “Mas sois ímpios a tal ponto que procurais a
divindade onde não está, que a procurais naqueles que não a possuem”
·
Capítulo XXX - “Que o imperador faça guerra ao céu, que leve o
céu cativo em seu triunfo, que ponha guardas no céu, que imponha taxas ao céu!
Ele não pode!”
·
Capítulo XXXI - “Aquele de vós que pensa que não nos importamos
com o bem-estar de César, investigue as revelações de Deus, examine nossos
livros sagrados, os quais nós não escondemos e que por muitas maneiras acabam
parando nas mãos daqueles que não são dos nossos”
·
Capítulo XXXII - “Enquanto nos recusamos jurar pelo gênio de
César, nós juramos por sua segurança, a qual é muito mais importante que todo
seu gênio. São vocês ignorantes do fato de que esses gênios são chamados
“Daimones”, e que o diminutivo “Daimonia” é aplicado a eles?”
·
Capítulo XXXIII - “Nunca irei chamar o imperador de Deus, e isso
porque não está em mim ser culpado de falsidade; ou porque eu não me atrevo a
expô-lo ao ridículo; ou porque ele mesmo não desejará ter esse alto nome a ele
aplicado. Se ele é somente um homem, é do seu interesse como homem dar a Deus
seu alto posto”
·
Capítulo XXXIV - “Cessem também de atribuir o nome sagrado àquele
que necessita de Deus. Se essa adulação mentirosa não é vergonhosa, chamando
divino um homem, deixe que ele tenha pavor pelo menos do mau presságio o qual
ele suporta”
·
Capítulo XXXV - “Se não estou enganado, os senadores eram
romanos; isto é, eles não eram cristãos. Ainda todos eles, na véspera de suas
traições, ofereceram sacrifícios pela vida do imperador, e juraram por ele; uma
coisa em profissão e outra em seus corações; e eles tinham o hábito de
denominar os cristãos de inimigos do Estado”
·
[...]
» CAPÍTULO I
Governantes do Império Romano:
·
Se, sendo constituídos para a
administração da justiça em vosso elevado Tribunal, sob os olhares de todos os
cidadãos, ocupando ali a mais elevada posição no Estado, vós não podeis
abertamente inquirir e perscrutar, diante de todo o mundo, a verdade real com
respeito às perseguições feitas contra os Cristãos
·
Se, somente nesse caso, tendes receio
ou ficais inibidos para exercer vossa autoridade, fazendo uma inquirição
pública com os cuidados que promovem a justiça
·
Se, finalmente, os extremos rigores
usados para com nosso povo, recentemente, em julgamentos privados, são para nós
obstáculo para defender-nos perante vós
então, seguramente não podeis impedir de a Verdade
chegar aos vossos ouvidos pelas vias secretas de um silencioso livro.
A Verdade não tem como apelar para vos fazer
verificar sua condição, porque isso não promove vossa curiosidade por Ela. Ela
sabe que não é senão uma transeunte na terra, e que entre estranhos,
naturalmente encontra inimigos. E, mais do que isso, sabe que sua origem, sua
habitação natural, sua esperança, sua recompensa, sua honra estão lá em cima.
Uma coisa, enquanto isso, Ela deseja ansiosamente dos governantes terrestres:
não ser condenada sem ser conhecida. Que dano pode causar às leis - supremas em
seu poder - conceder-lhe ser ouvida? Absolutamente nada lhe prejudicaria e sua
supremacia não seria mais distinguida ao condená-la, mesmo depois que Ela
apresentasse sua defesa? Mas se for pronunciada uma sentença contra Ela, sem
ter sido ouvida, ao lado do ódio de uma injusta ação, vós incorrereis na
suspeita merecida de assim agirdes com alguma intenção que é injusta, como não
desejando ouvir o que vós não estais capacitados a ouvir e a condenar.
Colocamos isto ante vós como primeira argumentação
pela qual insistimos que é injusto vosso ódio ao nome de “Cristão”. E a
verdadeira razão que parece escusar esta injustiça (eu diria ignorância) ao
mesmo tempo a agrava e a condena. Pois que o que é mais injusto do que odiar
uma coisa da qual nada sabeis, mesmo se pensais que ela mereça ser odiada? Algo
é digno de ódio somente quando se sabe que é merecido. Mas sem esse
conhecimento, por que se reivindicar justiça? Pois se deve provar, não pelo
simples fato de existir uma aversão, mas pelo conhecimento do assunto. Quando
os homens, portanto, cultivam uma aversão simplesmente porque desconhecem
inteiramente a natureza da coisa odiada, quem diz que não se trata de uma coisa
que exatamente não deveriam odiar?
Assim, confirmamos que tanto são ignorantes
enquanto nos odeiam, e odeiam descabidamente, quanto quando continuam em sua
ignorância, sendo uma coisa o resultado da outra, se não o instrumento da
outra. A prova de sua ignorância, ao mesmo tempo condenando e se escusando de
sua injustiça, é esta - odeiam o Cristianismo porque não conhecem nada sobre
ele nem querem conhecê-lo antes de por a todos debaixo de sua inimizade.
Quantos, se antes foram seus inimigos, tornam-se
seus discípulos. Simplesmente aprendendo sobre eles, logo começam a odiar o que
antes tinham sido e a professar o que antes tinham odiado. E o número destes é
tão grande que atraem a vossa preocupação. O clamor é de que o Estado está
cheio de cristãos - que estão nos campos, nos vilarejos, nas ilhas; levantam-se
lamentações, como se por alguma calamidade, pessoas de ambos os sexos, de todas
as idades e condições, mesmo de classe alta, estão se convertendo à profissão
de fé cristã.
Entretanto, não ocorre a ninguém o pensamento de
que estão deixando de ver alguma coisa boa. Não se permitem que nenhum
pensamento mais justo chegue à sua mente, não desejam fazer um julgamento mais
correto. Somente neste caso fica adormecida a curiosidade da natureza humana.
Preferem ficar ignorantes, embora aos outros o conhecimento tenha trazido a
felicidade.
Anacarse reprova o estúpido prazer de criticar os
cultos. Quanto mais não reprovaria ele o julgamento daqueles que sabe que podem
ser denunciados por homens que são inteiramente ignorantes! Porque deles
preconcebidamente não gostam, não querem saber mais. Assim, prejulgam aquilo
que não conhecem até que, caso venham a conhecê-lo, deixem de lhe ter
inimizade. Mas isso desde que pesquisem e nada encontrem digno de sua
inimizade, quando deixam, então, certamente de ter uma aversão injusta.
Entretanto, se seu mau caráter se manifesta, em vez de abandonarem o ódio
encontram mais uma forte razão para perseverarem nesse ódio, mesmo sob a
própria autoridade da justiça.
Mas argumenta alguém: uma coisa não é boa
simplesmente porque as multidões se convertem a ela, pois que quantos são por
sua natureza inclinados para o que é mal?! Quantos se desviam para os caminhos
do erro?! Isso é verdade, sem dúvida. Contudo uma coisa completamente má, nem
mesmo aqueles que a ela são levados ousam defendê-la como boa. A natureza
encobre tudo o que é mau com um véu, seja de medo seja de vergonha. Por
exemplo, vedes que criminosos ficam ansiosos para se esconderem eles mesmos,
evitam de aparecer em público, ficam tremendo quando são caçados, negam sua
culpa quando são acusados e, mesmo quando são submetidos à tortura, não
confessam facilmente, nem sempre chegam a confessar; e quando não há dúvidas
sobre sua culpa, lamentam o que fizeram. Em suas confissões admitem terem sido
impelidos por disposições malignas, até põem a culpa seja no destino, seja nas
estrelas. São incapazes de reconhecerem que aquilo veio deles, porque eles
próprios sabem que aquilo é mau.
Mas o que tem isso de semelhante com o caso dos
cristãos? Eles se envergonham ou se lamentam de não terem sido cristãos há mais
tempo. Se são apontados cristãos, disso se gloriam. Se são acusados, não
oferecem defesa. Interrogados, fazem uma confissão voluntária. Condenados,
agradecem... Que espécie de mal é este que não apresenta as peculiaridades
comuns do mal, do medo, da vergonha, do subterfúgio, do arrependimento, do
remorso? Que mal, que crime é este de que o criminoso se alegra? Serem acusados
cristãos é seu mais ardente desejo, serem punidos por isso é sua felicidade!
Vós não podeis chamar isto de mal - vós que continuais convictos de nada
saberdes do assunto.
» CAPÍTULO II
Se, repetindo, é certo que somos os mais malévolos
dos homens, por que nos tratais tão diferentemente de nossos companheiros, ou
seja, de outros criminosos, sendo justo que o mesmo crime deva receber o mesmo
tratamento? Quando os ataques feitos contra nós são feitos contra outros, a
esses são permitidos falarem ou contratar advogados para demonstrar sua
inocência. Eles têm plena oportunidade de resposta e de discussão.
De fato, é contra a lei condenar alguém sem defesa
e sem audiência. Somente os cristãos são proibidos de dizerem algo em sua
defesa, na salvaguarda da verdade, para ajudar ao juiz numa decisão de direito.
Tudo o que é levado em conta é que o público, com ódio, pede a confissão de um
“nome”, não o exame da acusação, enquanto em vossas investigações ordinárias
judiciais, no caso de um homem que confessa assassinato, ou sacrilégio, ou
incesto, ou traição - para se ter idéia do crime de que são acusados - vós não
vos contentais em imediatamente emitir uma sentença. Não o fazeis até que
examinais as circunstâncias da confissão, qual é o tipo do crime, quantas
vezes, onde, de que maneira, quando ele o fez, quem estava com ele e quem tomou
parte com ele no crime.
Nada semelhante é feito em nosso caso, embora as
falsidades disseminadas a nosso respeito devessem passar pelo mesmo exame para
saber quantas crianças foram mortas por cada um de nós, quantos incestos
cometemos cada um de nós na escuridão, que cozinheiros, que biltres foram
testemunhas de nossos crimes. Ó que grande glória para os governantes que
trouxessem à luz alguns cristãos que tivessem devorado uma centena de crianças.
Mas, em vez disso, constatamos que mesmo uma inquisição, no nosso caso, é
proibida.
Plínio, o Moço, quando era governador de uma província, tendo
condenado alguns cristãos à morte, e abalado outros em sua firmeza, mas ficando
aborrecido com o grande número deles, procurou, em última instância, o conselho
de Trajano, o imperador reinante, para saber o que fazer com eles. Explicou a
seu senhor que, com exceção de uma recusa obstinada de oferecer sacrifícios,
nada encontrou em seus cultos religiosos a não ser reuniões de manhã cedinho em
que cantavam hinos a Cristo e a Deus, confirmando que, em suas casas, seu modo
de vida era um geral compromisso de ser fiel a sua religião, proibido-se
assassínios, adultério, desonestidade e outros crimes. A respeito disso,
respondeu Trajano que os cristãos não deveriam de modo algum ser
procurados, mas se fossem trazidos diante dele, Plínio, deveriam ser punidos.
Ó miserável libertação - de acordo com o caso, uma
extrema contradição! Proíbe-se que sejam procurados, na qualidade de inocentes,
mas manda-se que sejam punidos como culpados. É ao mesmo tempo misericordioso e
cruel. Deixa-os em paz, mas os pune. Por que entrais num jogo de evasão
convosco mesmo, ó julgamento? Se vós os condenais, por que também não os
inquiris? Se não quereis inquiri-los, por que não os absolveis?
Postos militares estão espalhados através de todas
as províncias para prenderem ladrões. Contra traidores e inimigos públicos,
todo cidadão é um soldado. Buscas são feitas mesmo de seus aliados e
auxiliares. Somente os cristãos não devem ser procurados, embora possam ser
levados e acusados diante do juiz, se uma busca tiver um resultado diferente do
previsto. Deste modo, condenais um homem que ninguém deseja perseguir, quando
ele vos é apresentado e que, nem por isso, merece punição. Suponho que não por
sua culpa, mas porque, embora seja proibido persegui-lo, ele foi encontrado.
Novamente, neste caso, não concordais conosco sobre
os procedimentos ordinários de julgamento de criminosos, porque, no caso de
negarem, aplicais a tortura para forçar uma confissão. Aos cristãos somente
torturais para fazê-los negarem. É como se considerásseis que se somos culpados
de algum crime, nós o negaríamos, e vós com vossas torturas nos forçaríeis a
uma confissão. Mas não podeis pensar assim pois, na verdade, nossos crimes não
requerem tal investigação simplesmente porque já estais cientes por nossa
confissão do nome de nosso crime. Estais diariamente acostumados a isso,
sabendo de que crime se trata porque senão exigiríeis uma confissão completa de
como o crime foi executado.
Deste modo, agis com a máxima perversidade quando
verificando nossos crimes comprovados por nossa confissão do nome de Cristo,
nos levais à tortura para obter nossa confissão que não consiste senão em
repudiar tal nome, e que logo deixais de lado os crimes de que nos acusais
quando mudamos nossa confissão. Suponho que, embora que acreditando que sejamos
os piores dos homens, não desejais que morramos. Não há dúvida de que, por
conseguinte, estais habituados a compelir o criminoso a negar e a ordenar o
homem culpado de sacrilégio a ser torturado se ele persevera em sua confissão.
É esse o sistema? Mas, então, não concordais que sejamos criminosos, e nos
declarais inocente, e como inocentes que somos, ficais ansiosos para que não
perseveremos na confissão que sabeis que vos fará assumir uma condenação por
necessidade, não por justiça.
“Sou cristão”
- o homem brada. Ele está lhe dizendo o que é. Vós, porém, desejaríeis ouvi-lo
dizer que não o é. Assumindo vosso cargo de autoridade para extorquir a
verdade, fazeis o máximo para ouvir uma mentira nossa. “Eu sou o que me
perguntais se eu sou” - ele diz. Por que me torturais como criminoso? Eu
confesso e vós me torturais. O que me faríeis se tivesse negado? Certamente a
outros vós não daríeis crédito se negassem. Quando nós negamos, vós logo
acreditais. Essa perversidade vossa faz suspeitar que há um poder escondido no
caso, sob a influência do qual agis contra os hábitos, contra a natureza da
justiça pública, até mesmo contra as próprias leis. Pois que - salvo se estou
errado - as leis obrigam a que os malfeitores sejam procurados e não que sejam
acobertados. A lei foi feita para que as pessoas que praticarem um crime sejam
condenadas, e não absolvidas. Os decretos do Senado, as instruções dos vossos
superiores expõem isso claramente. O poder do qual sois executores é civil, não
uma tirânica dominação. Entre tiranos, de fato, os tormentos são utilizados
para serem aplicados como punições; entre vós são mitigados como um instrumento
de interrogatório. Guardai vossa lei como necessária até que seja obtida a
confissão. E se a tortura é antecipada pela confissão, não há necessidade dela.
A sentença foi passada. O criminoso deve ser entregue ao castigo devido e não
libertado.
De acordo com isso, ninguém anseia pela absolvição
do culpado, não é certo desejar isso, e assim ninguém nunca deve ser compelido
a negar. Bem, julgais um cristão um homem culpado de todos os crimes, um
inimigo dos deuses, do Imperador, das leis, da boa moral de qualquer natureza.
Contudo vós o obrigais a negar, porque, assim, podeis absolvê-lo, o que sem sua
negação não podeis fazê-lo. Vós agis rápido e desmereceis as leis. Quereis que
ele negue sua culpa, porque podeis sempre, mesmo contra sua vontade, isentá-lo
de censura e livrar-lhe de toda culpa em referência a seu passado. De onde vem
essa estranha perversidade da vossa parte? Como não refletis que uma confissão
espontânea é mais digna de crédito do que uma negação obrigada? Considerai que,
quando compelido a negar, a negação de um homem pode ser feita de má fé, e se
absolvido, ele pode, agora e ali, logo que o julgamento termine, rir da vossa
hostilidade; e um cristão igualmente.
Vendo, então, que em tudo agis conosco
diferentemente de que com outros criminosos, preocupados por um único objetivo
- o de obter de nós o nosso nome (na verdade, não nos cabe dizer que os
cristãos não existam) - fica perfeitamente claro que não há crime de nenhuma
espécie nesse caso, mas simplesmente um nome que um determinado sistema - mesmo
indo contra a verdade - persegue com sua inimizade. E age assim principalmente
com o objetivo de se assegurar que os homens não venham a ter como certo o que
conhecem como certo e de que esse sistema é completamente desconhecedor.
Consequentemente, também, acontece que eles
acreditam em coisas sobre nós das quais não têm prova, sobre as quais não estão
inclinados a pesquisar, incomodados com as perseguições. Eles gostariam mais de
confiar, pois está provado que nada há de fundamentado contra os cristãos. Com
esse nome tão hostil àquele poder rival - seus crimes sendo presumidos, não
provados - eles poderiam ser condenados simplesmente por causa de sua própria
confissão. Assim, somos levados à tortura se confessamos e somos punidos se
perseveramos, mas se negamos somos absolvidos porque toda a hostilidade é
contra o nome.
Finalmente, por que ides constar em vossas listas que
tal homem é cristão? Por que não também que ele é um criminoso, por que não um
culpado de incesto ou de outra coisa vil de que nos acusais? Somente em nosso
caso, ficais incomodados ou envergonhados de mencionar os nomes verdadeiros de
nossos crimes. Se ser chamado “Cristão” não implica em nenhum crime, esse nome
é seguramente muito odiado quando por si só constitui crime.
» CAPÍTULO III
Que pensarmos disto: a maioria do povo tão cega
bate suas cabeças contra o odiado nome de “Cristão”? Quando dão testemunho de
alguém, eles confundem com aversão o nome de quem testemunham. “Gaio Seius é
um bom homem” - diz alguém... “só que é cristão”. E outro: “Fico
atônito como um homem inteligente como Lúcio pode de repente se tornar cristão”.
Ninguém considera necessário apreciar se Gaio é bom ou não, e Lúcio,
inteligente ou não. O que conta no caso é se é cristão ou se é cristão embora
sendo inteligente e bom. Eles louvam o que conhecem e desprezam aquilo que não
conhecem. Baseiam seu conhecimento em sua ignorância embora, por justiça,
preferencialmente se deva julgar o que é desconhecido pelo que é conhecido e
não o que é conhecido pelo que é desconhecido.
Outros, no caso de pessoas a quem conheceram antes
de se tornarem cristãos, que conheciam como mundanas, vis, más, aplicam-lhes a
marca da qualidade que verdadeiramente apreciam. Na cegueira de sua aversão,
tornam-se grosseiros em seu próprio julgamento favorável: “Que mulher era
ela! Que temerária! Como era alegre! Como ele era jovem! Que descarado! Como
era amigo do prazer! - E pena, se tornaram cristãos!”.
Assim, o nome odiado é usado preferencialmente a
uma reforma de caráter. Alguns até trocam seus confortos por este ódio,
satisfazendo-se em cometer uma injúria para livrarem sua casa dessa sua mais
odiosa inimizade. O marido, agora não mais ciumento, expulsa de sua casa a
esposa, agora casta. O pai, que costumava ser tão paciente, deserda o filho,
agora obediente. O patrão, outrora tão educado, manda embora o servo, agora
fiel. Constitui grave ofensa alguém reformar sua vida por causa do nome
detestado. Bondade é de menos valor do que o ódio aos Cristãos.
Bem, então, se tal é a aversão pelo nome, que
censura podeis vós aplicar a nomes? Que acusação podeis levantar contra simples
designações, a não ser que o nome indique algo bárbaro, algo desgraçado, algo
vil, algo libidinoso. Mas Cristão, tanto quanto indica o nome, é derivado de “ungido”.
Sim, e mesmo quando é pronunciado de forma errada por vós, “Chrestianus”,
- por vós que não sabeis precisamente o nome que odiais - ele lembra doçura e
benignidade.
Odiais, portanto, gratuitamente, um nome inocente.
Mas o especial motivo de desagrado com a seita é
que lembra o nome de seu Fundador. Existe novidade numa seita religiosa que dá
a seus seguidores o nome de seu Mestre? Não são os filósofos designados com o
nome dos fundadores de seus sistemas: Platônicos, Epicuristas, Pitagóricos? Não
são os Estóicos e Acadêmicos assim chamados também por causa dos lugares nos
quais se reuniam e permaneciam? Não são os médicos chamados por nome derivado
de Erasistrato, os gramáticos, de Aristarco, e também os cozinheiros, de
Apício? E, contudo, a exibição do nome, derivado do fundador original, ou
qualquer nome designado por ele, não ofende a ninguém. Não há dúvida de que se
a seita se comprova maléfica, e, igualmente, mau seu fundador, isso nos leva a
considerar maléfico o nome e nos merece aversão o caráter seja da seita, seja
do autor. Antes, contudo, de assumir uma aversão ao nome, sois obrigados a
julgar a seita pelo que é o autor, ou o autor pelo que é a seita.
Mas, no caso em questão, sem nenhum exame ou
conhecimento de ambos, o simples nome se torna objeto de acusação; o simples
nome é atacado, e somente uma palavra leva à condenação da seita e de seu
autor, conquanto a ambos desconheceis, mas apenas porque eles têm tal e tal
nome, não porque foram julgados por algo errado.
» CAPÍTULO IV
Assim, tendo feito essas observações como se fossem
um prefácio, pelo qual mostro em verdadeiras cores a injustiça do nosso inimigo
público, posso agora fundamentar o argumento da nossa inocência. E poderei não
somente refutar as coisas de que nos acusam, como também replicar aos nossos
acusadores, para que assim todos saibam que os Cristãos estão inocentes desses
muitos crimes que os acusadores sabem existirem entre eles mesmos, mas que, em
suas acusações contra nós, consideram vergonhosos.
São acusações - eu não saberia dizer - dos piores
homens contra os melhores, pois eles mesmos praticam tais crimes; [acusam]
contra aqueles que, no caso, apenas seriam seus companheiros de pecado!
Poderemos refutar a acusação dos variados crimes de
que nos acusam cometer em segredo, já que os vemos cometendo-os à luz do dia.
Como são culpados dos crimes de que somos acusados sem sentido, são merecedores
de castigo, caindo no ridículo.
Mas, mesmo que nossa verdade vos refute com sucesso
em todos os pontos, vem se interpor a autoridade da lei, como um último
recurso, e alegais que suas determinações são absolutamente conclusivas, que
devem ser obedecidas, embora de má vontade, e preferidas à verdade.
Assim, nesse assunto das leis, me entenderei
primeiramente convosco como sendo elas vossos protetores escolhidos. Em
primeiro lugar, quando rigidamente as aplicais em vossas declarações: “Não é
legal a vossa existência”, e, com rigor sem hesitações, ordenais que assim
continue, estais demonstrando a dominação violenta e injusta de uma simples tirania,
afirmando que algo é ilegal simplesmente porque quereis que seja ilegal e não
porque deva ser ilegal. Mas se quereis que seja ilegal porque tal coisa não
merece ser legal, sem dúvida não deve ser dada permissão da lei para o que é
prejudicial.
Deste modo, de fato, já está definido que o que é
benéfico é legítimo. Bem, se eu verificar algo que em vossa lei proíba ser bom
porque alguém concluiu assim por opinião prévia, não perdeu seu poder de me
proibi-la, embora se tal coisa fosse má poderia me proibi-la?
Se vossa lei incidiu em erro, é de origem humana,
julgo. Ela não caiu do céu. Não é admirável que um homem possa errar ao fazer
uma lei ou cair em seus sentidos e rejeitá-la? Os Lacedemonios não emendaram as
leis do próprio Licurgo, daí causando tal desgosto a seu autor que ele se
calou, e se condenou a si próprio à morte por inanição? Não estais, a cada dia,
fazendo esforços para iluminar a escuridão da antigüidade, eliminando e
aparando com os novos machados das prescrições e editos todos os galhos
obsoletos e emaranhados das vossas leis?
Severo, o mais resoluto dos governantes, não acabou
somente ontem com as leis do ridículo Pápias, que compeliam as pessoas a terem
filhos antes que as leis de Juliano as permitissem contrair matrimônio e isso
embora tivessem a autoridade da idade a seu favor? Houve leis, também,
antigamente, legislando que as partes contra as quais havia sido dada uma
decisão, podiam ser cortadas aos pedaços por seus credores.
Contudo, por consenso comum, aquela crueldade foi
posteriormente retirada dos regimentos, e a pena capital se transformou numa
marca de vergonha. Adotando o plano de confiscar os bens dos devedores,
obteve-se mais tingindo de rubor suas faces do que fazendo jorrar seu sangue.
Quantas leis permanecem escondidas fora das vistas que ainda necessitam ser
reformadas! Para isso, nem o número de seus anos, nem a dignidade de seus
legisladores é que as recomendam, mas simplesmente se são justas; e, portanto,
quando sua injustiça é reconhecida, são merecidamente condenadas.
Até mesmo os governantes as condenam. Então, por
que os chamamos injustos? Não apenas! Se eles punem simples nomes, podemos
chamá-los de irracionais. Mas, eles punem atos! Por que, em nosso caso,
castigam atos somente com fundamento num nome enquanto nos outros casos exigem
que eles sejam provados não apenas por um nome, mas pelo mal feito?
Eu sou praticante de incesto (assim o dizem): por
que não fazem uma investigação sobre isso? Eu sou um matador de crianças, por
que não aplicam a tortura para obterem de mim a verdade? Eu sou culpado de
crimes contra os deuses, contra os Césares. Por que? Ora, eu sou capaz de me
defender, por que sou impedido de ser ouvido em minha própria crença?
Nenhuma lei proíbe examinar minuciosamente os
crimes que condenam, porque um juiz nunca aplica um castigo adequado se não
está bem seguro de que foi cometido um crime, nem obriga um cidadão às justas
cominações da lei, se não sabe a natureza do ato pelo qual está sendo punido.
Não é suficiente que a lei seja justa, nem que o juiz esteja convencido da sua
justiça. Aqueles dos quais se espera obediência deverão estar convencidos disto
também.
Não apenas! Uma lei fica sob forte suspeita se não
se preocupam que ela mesma seja examinada e aprovada. É realmente uma má lei
se, não homologada, tiranizar os homens.
» CAPÍTULO V
Para mencionar algumas palavras sobre a origem de
tais leis das quais estamos agora falando, cito um antigo decreto que diz que
nenhum deus deve ser instituído pelo imperador antes que primeiramente seja
aprovado pelo Senado.
Marco Emílio passou por essa experiência com
relação a seu deus Alburno. E assim, também, acontece em nosso caso, porque
entre vós a divindade é deificada por julgamento dos seres humanos. A não ser
que os deuses dêem satisfação aos homens, não lhe é reconhecida a divindade:
Deus deve ser propício ao homem.
Tibério, em cujos dias surgiu o nome Cristão no
mundo, tendo recebido informações da Palestina sobre os acontecimentos que
demonstraram claramente a verdade da divindade de Cristo, levou, adequadamente,
o assunto ante o Senado com sua própria decisão a favor de Cristo. O Senado
rejeitou sua proposta porque não fora ele mesmo que dera sua aprovação. O
imperador manteve sua posição ameaçando com sua ira todos os acusadores dos
cristãos.
Consultai vossas histórias. Verificareis que Nero
foi o primeiro que atacou com seu poder imperial a seita Cristã, fazendo isso,
então, principalmente em Roma. Mas nós nos gloriamos de termos nossa condenação
lavrada pela hostilidade de tal celerado porque quem quer que saiba quem ele
foi, sabe que nada a não ser uma coisa de especial valor seria objeto da
condenação de Nero.
Domiciano, igualmente, um homem do tipo de Nero em
crueldade, tentou erguer sua mão em nossa perseguição, mas possuía algum
sentimento humano; logo pôs um fim ao que havia começado, chegando a restituir
os direitos daqueles que havia banido.
Assim, como foram sempre nossos perseguidores,
homens injustos, ímpios, desprezíveis, dos quais vós mesmos nada tendes de bom
a dizer, vós tendes por costume revalidar suas sentenças sobre nós, os
perseguidos. Mas entre tantos príncipes daquele tempo até nossos dias, dotados
de alguma sabedoria divina e humana, assinalem um único perseguidor do nome
Cristão. Bem pelo contrário, nós trazemos ante vós um que foi seu protetor,
como podereis ver examinando as cartas de Marco Aurélio, o mais sério dos
imperadores, cartas nas quais ele dá seu testemunho daquela seca na Germânia
que terminou com as chuvas obtidas pelas preces dos cristãos, as quais permitiu
que os germânicos fossem atacados. Como não pôde suspender a ilegalidade dos
cristãos por lei pública, contudo, a seu modo, ele a colocou abertamente de
lado e até acrescentou uma sentença de condenação, esta da maior severidade,
contra os seus acusadores.
Que qualidade de leis são essas que somente os
ímpios e injustos, os vis, os sanguinários, os sem sentimentos, os insanos,
executam contra nós? Que Trajano por muito tempo tornou nula proibindo procurar
os cristãos? Que nem Adriano, embora dedicado no procurar tudo o que fosse
estranho e novo, nem Vespasiano, embora fosse o subjugador dos Judeus, nem Pio,
nem Vero, jamais as puseram em prática?
Certamente, seria considerado mais natural homens
maus serem aniquilados por bons príncipes, na qualidade de seus naturais
inimigos, do que o serem aqueles possuidores de espirito assemelhado com o
desses últimos.
» CAPÍTULO VI
Eu gostaria de ter agora esses protetores
inteligentes e defensores das leis e instituições de seus ancestrais, em
atenção à sua fidelidade, à honra e à submissão que demonstraram às
instituições ancestrais; eles que partiram do nada; eles que em nada se
afastaram das antigos normas; eles que nada relegaram do que é mais útil e
necessário, como normas de uma vida virtuosa.
O que aconteceu com as leis que reprimiam os caros
e ostensivos modos de vida? Que proibiam gastar mais do que cem asses num
jantar, e mais do que uma ave para se sentar à mesa por algum tempo, e essa não
engordada... Que expulsavam severamente um patrício do Senado, como se conta,
porque ambicionava ser demasiado poderoso, porque tinha lucrado 10 libras de
prata... Que fechavam os teatros logo que começassem a debochar das maneiras do
povo... Que não permitiam que a insígnia de dignidades de oficial ou de nobre
nascimento fossem precipitadas ou impunemente usurpadas...
Pois eu vejo os jantares de uma centena de asses se
apresentarem agora, não como de uma centena de asses, mas que gastam um milhão de
sestércios*. Vejo que minas de prata são feitas em cinzas (isso,
aliás, é pouco se fossem apenas os senadores que fizessem tal, e não também os
libertos ou também os simples espoliadores).
E vejo, também, que um simples teatro não é o
suficiente, nem há teatros descobertos: não há dúvidas que isso é em busca
desse imoderado luxo, que poderia até não ser desprezível no inverno, pois que
os Lacedemonios inventaram seus capotes de lã para os jogos.
Vejo agora que não há diferença entre as vestes das
senhoras e das prostitutas. Com respeito às mulheres, na verdade, aquelas leis
de vossos pais, que costumavam ser de encorajamento à modéstia e à sobriedade,
caíram também em desuso. Então, uma mulher não sabia o que era possuir, com
suas economias, ouro no dedo que não fosse o do anel nupcial com que seu marido
tinha, de forma sagrada, se comprometido.
Então, a abstinência das mulheres quanto ao vinho
era levada tão a sério que uma senhora, por abrir o compartimento da adega de
vinho, foi condenada à morte por inanição pelos seus amigos. No tempo de
Rômulo, Mecênio matou sua esposa simplesmente por testar um vinho, nada
sofrendo por conta dessa morte. Com referência a isso, também, era costume das
mulheres beijar seus parentes porque eles podiam ser conhecidos por seu hálito.
Onde está a felicidade da vida de casado, sempre
tão desejável, que distinguiam nossos antigos costumes e por consequência dos
quais por cerca de 600 anos não houve entre nós um único divórcio?
Agora, as mulheres têm cada membro do corpo
carregado com ouro, beber vinho é tão comum entre elas que nunca dão o beijo
espontaneamente, e para forçar o divórcio, elas sonham com ele como se fosse a
consequência natural do casamento.
As leis de vossos antepassados em sua sabedoria
regulavam a respeito dos próprios deuses, as quais, vós, seus descendentes,
revogaram.
Os cônsules, por autoridade do Senado, baniram o
Pai Baco e seus cultos, não simplesmente da cidade, mas de toda Itália. Os
cônsules Piso e Gabínio, decerto não cristãos, impediram os deuses Serápis,
Ísis e Arpocrates, com seu amigo cabeça de cão, de serem admitidos no
Capitólio, cassando-os de imediato da assembléia dos deuses, destruindo seus
altares, expulsando-os do país, ansiosos de evitarem que se espalhassem os
vícios em que se baseavam, bem como sua religião lasciva. A esses vós
restaurastes e lhes conferistes as mais elevadas honras.
O que aconteceu com vossa religião, que venerava os
vossos ancestrais? Em vossas vestes, em vossos alimentos, em vosso estilo de
vida, em vossas opiniões, e, por último, em vossos ensinamentos, renunciastes
aos vossos progenitores!
Estais sempre louvando os tempos antigos e,
contudo, a cada dia aceitais novidades em vosso modo de vida. Falhastes em
manter o que devíeis, fazeis isso claramente, porque enquanto abandonastes os
bons costumes de vossos pais, retendes e guardais aquilo que não devíeis.
Ainda que pareçais defender tão fielmente a
tradição verdadeira, na qual encontrais a principal razão de acusação contra os
Cristãos - quero dizer, o zelo na adoração aos deuses, ponto principal no qual
os antigos incidiram em erro, embora tenhais reconstruído os altares de
Serápis, agora uma divindade romana, e a de Baco, agora tornado um deus da
Itália, a quem ofereceis vossas orgias - demonstrarei na ocasião adequada,
contudo, que desprezais, negligenciais e destruís a autoridade dos antigos,
pondo-a inteiramente de lado.
Vou, por enquanto, responder àquela infame acusação
de crimes secretos, trazendo as coisas à luz do dia.
*1
sestércio = 2,5 asses.
» CAPÍTULO VII
Monstros de maldade, somos acusados de realizar um
rito sagrado no qual imolamos uma criancinha e então a comemos, e no qual, após
o banquete, praticamos incesto, e os cães, nossos alcoviteiros, pois não,
apagam as luzes para na imoralidade da escuridão nos entregarmos a nossas
ímpias luxurias!
Isto é o que constantemente usais para nos
perseguir, embora não tenhais tido o cuidado de elucidar a veracidade de tais
coisas de que somos acusados há tanto tempo. Tragam, então, esse assunto à luz
do dia, se acreditais nisso, ou não lhes deis crédito, se nunca investigastes a
respeito. Com base nesse dissimulado jogo, somos levados a vos esclarecer que
não é verdade um fato que não ousais investigar.
Determinais aos executores, no caso dos Cristãos,
um processo bem diferente de investigação: não lhes cabe fazer-nos confessar o
que praticamos, mas fazer-nos negar o que somos.
Datamos a origem de nossa religião, como antes já
mencionamos, do tempo do reino de Tibério. A verdade e a aversão à verdade
vieram ao mundo juntas. Assim que a verdade apareceu, foi olhada como inimiga.
Nesse processo há tantos loucos quantos desconhecedores dele: os Judeus, como
se deve pensar, levados por um espirito de rivalidade; os soldados, levados
pelo desejo de extorquir dinheiro; nossos domésticos, levados por sua natureza.
Somos diariamente atacados por ensandecidos, diariamente traídos, somos muitas
vezes surpreendidos em nossas assembléias ou cultos.
Quem encontrou algo por pequeno que seja sobre uma
criança chorando, de acordo com o boato popular? Quem procurou o juiz porque
encontrou, de fato, as ensangüentadas fauces dos Ciclopes e das Sereias? Quem
achou quaisquer traços de impureza em nossas viúvas? Onde está o homem que
quando encontrou tais atrocidades as ocultou? Ou será que no ato de levar os
culpados à presença do juiz foi subornado para não proceder a acusação?
Se sempre mantemos nossos segredos, quando se
tornaram conhecidos do público nossos atos? Então, por quem poderiam ter sido
desvendados? De certo não pelos próprios acusados, mesmo porque há o conceito
de fidelidade ao silêncio que é sempre própria dos mistérios. Por acaso, os
Samotrácios e os Eleusínios não escondem o quanto procuram manter silêncio a
respeito do que verdadeiramente são, em seus segredos, promovendo castigos
humanos oportunos e ameaçando com a futura ira divina?
Se, então, os Cristãos não são eles próprios os
denunciadores de seus crimes, conclui-se que são os estranhos. E como têm
conhecimento deles, quando é também um costume universal nas iniciações
religiosas manter os profanos à distância e se precaver de testemunhas? A menos
que aconteça que esses que são tão perversos tenham menos medo do que seus
vizinhos!
Todo mundo sabe que coisa é o boato. Diz um de
vossos provérbios: “Dentre todos os males nada voa mais depressa do que o
boato”. É porque ele dá informações? Ou é porque ele é tremendamente
mentiroso? Não é uma coisa que nem mesmo quando diz alguma verdade, apresenta
uma mancha de falsidade, seja detratando, seja aumentando, seja mudando o fato
em si? E não faz parte de sua natureza sobreviver somente enquanto mente, e
viver somente enquanto não há provas? Pois que quando se tem a prova, ele deixa
de existir.
Tendo feito seu trabalho de simplesmente espalhar
uma notícia, ele conta algo que daí em diante passa a ser um fato e a ser
chamado um fato. Então, já ninguém diz, por exemplo: “Dizem que aconteceu em
Roma”, ou “Há um boato de que ele ganhou uma província”, mas “Ele
ganhou uma província”, e “Aconteceu em Roma”. Boato é a verdadeira
designação da incerteza, não sobrevive quando o fato é comprovado.
Ninguém exceto um louco confia nele, não é? Um
homem prudente nunca acredita naquilo que é duvidoso.
Todo mundo sabe como ele se espalha com afinco,
como sobrevive com uma afirmação sem limites, como é apenas uma vez ou outra
que mostra sua origem. Por isso, necessita se infiltrar através das línguas e
ouvidos. Uma pequena semente obscurece toda a história, de modo que ninguém
pode determinar se os lábios dos quais se originou, plantou a semente da
falsidade, como muitas vezes acontece, por um espirito de oposição ou por um
julgamento suspeito ou por um julgamento confirmado ou, como em alguns casos,
por um inato prazer em mentir.
É certo que o tempo traz tudo à luz, como vossos
provérbios e ditos testemunham, por um procedimento da natureza da verdade que
desvela as coisas de tal modo que nada fica escondido por muito tempo, mesmo
embora o boato não o faça.
É justamente, então, o que deve acontecer, com essa
fama tão duradoura que denuncia os crimes dos cristãos.
Esse boato é a testemunha que trazeis contra nós -
boato que nunca foi capaz de provar a acusação que vez ou outra se espalha e,
ultimamente, por simples repetição se fez opinião firmada no mundo.
Assim, confiantemente apelo àquela natureza da
verdade, sempre reveladora, contra os que infundadamente levantam tais
acusações.
» CAPÍTULO VIII
Atentai agora! Apresentamo-vos a recompensa por
essas monstruosidades: os Cristãos prometem a vida eterna. Asseguram-na assim
também como é de vossa própria convicção.
Pergunto-vos: se assim crêem, não julgais que se
farão dignos de obtê-la mantendo uma consciência igual a que pretendeis ter?
Vamos, enfiai vossa faca numa criança que não faz mal a ninguém, toda
inocência, amada por todos. Ou se isso é feito por outro, simplesmente assisti
de vosso lugar a um ser humano morrendo antes de ter realmente vivido, esperai
a partida da última alma, recebei o sangue fresco, molhai com ele vosso pão,
participai disso livremente. Enquanto vos reclinais à mesa, vede os lugares que
vossa mãe e vossa irmã ocupam. Guardai-os bem, de modo que quando o cão trouxer
a escuridão para vos envolver, não possais cometer erro, porque sereis culpados
de crime se não cometerdes uma ação de incesto.
Iniciados e marcados em semelhantes barbaridades,
tendes a vida eterna! Dizei-me, imploro-vos, é a eternidade digna disso? Se não
é, então tais coisas não devem merecer crédito.
Mesmo se acreditastes, nego essa vossa vontade. E
mesmo se tivestes a vontade, nego a possibilidade. Por que, então, outros
poderiam fazê-lo? Por que não podeis se outros podem? Suponho, então, que somos
de uma natureza diferente. Somos Cães ou Monstros? Sois homens tanto quanto os
cristãos; se não podeis fazê-lo, não podeis acreditar que outros o possam,
porque os cristãos são humanos tanto quanto vós.
Mas os que desconhecem essas coisas certamente
estão decepcionados e se prevalecem disso. Estão perfeitamente inscientes de
que algo dessa natureza é imputado aos cristãos ou, certamente, se informaram
por si próprios e desvendaram o assunto.
Mas, em vez disso, é costume das pessoas que
desejam iniciação a ritos sagrados, penso eu, ir antes de tudo ao Líder deles
para que lhes possa explicar os preparativos que devem ser feitos. Então, nesse
caso, não há dúvidas que este diria: deveis levar uma criança ainda de tenra
idade, que não saiba o que é morrer, e possa sorrir sob vossa faca; também, pão
para aparar o sangue que correrá. Além disso, candelabros, lâmpadas, e cães,
com iscas para atraí-los ao apagar das luzes. E, antes de tudo, deveis levar
vossa mãe e vossa irmã convosco. Mas o que fazer se a mãe e a irmã não quiserem
ir? Ou se não tiver nem uma nem outra? O que fazer se houver cristãos sem
parentes cristãos? Não será tido, suponho, por um verdadeiro seguidor de
Cristo, quem não tiver um irmão ou um filho.
E o que acontecerá, se essas coisas todas estiverem
dispostas como dito, sem o conhecimento deles? No máximo, depois que eles os
virem, se afastam e os perdoam.
Temem - é de se concluir - que pagarão por isso se
divulgarem o segredo? De modo algum, antes irão, em tal caso, pedir proteção.
Preferirão mesmo - pode-se entender - morrer por suas próprias mãos a viver sob
o fardo de tão terrível conhecimento. Admitamos que eles terão medo. Contudo
por que eles iriam continuar com a coisa?
Pois é bastante claro que vós não desejaríeis
continuar sendo o que nunca quisestes ser, se tivésseis tido prévio
conhecimento do assunto.
» CAPÍTULO IX
Eis como posso refutar tais acusações:
mostrar-vos-ei práticas que vigoram entre vós, em parte abertamente, em parte
secretamente, que vos levaram, talvez, a nos acusar de coisas semelhantes.
Os meninos eram sacrificados abertamente na África
a Saturno até o proconsulado de Tibério, que expôs à vista do público os seus
sacerdotes crucificados nas árvores sagradas, que lançavam sombras sobre seus
templos - tantas eram as cruzes nas quais a justiça exigida aplicou o castigo
por seus crimes, como os nossos soldados podem ainda testemunhar, tendo sido,
de fato, esta uma obra daquele Procônsul. Até presentemente aquele criminoso culto
continua a ser feito, secretamente.
Não seriam somente os Cristãos, estais vendo, que
vos menosprezariam, porque com isso tudo o que fazeis nenhum crime foi
inteiramente e permanentemente erradicado, nem nenhum de vossos deuses reformou
seus costumes. Se Saturno não poupou seus próprios filhos, ele também não
poupou os filhos dos outros, e os pais desses, na verdade, tinham, eles mesmos,
o hábito de fazer tal oferenda, atendendo contentes ao pedido que lhes era
feito, mantendo as crianças satisfeitas na ocasião, para que não morressem aos
choros.
Destacamos também que há uma grande diferença entre
homicídio e parricídio. Mas homens idosos eram sacrificados a Mercúrio, nas
Gálias. Tenho em mãos as lendas táuricas feitas para vossos próprios teatros.
Por que, mesmo nesta profundamente religiosa cidade de piedosos descendentes de
Enéias, há um certo Júpiter que em vossos jogos é banhado com sangue humano? É
o sangue de um lutador feroz, dizeis. Por isso, o sangue de um homem se torna
irrelevante? Ou não é mais infame o sangue porque corre das veias de um homem
mau? De qualquer modo, é sangue derramado até a morte. Ó Júpiter, vós soi um
Cristão, e de fato, por vossa crueldade, digno filho de vosso pai!
Mas com respeito à morte de uma criança, como se
não interessasse se fosse cometido para um sagrado culto, ou simplesmente por
um impulso próprio (embora haja uma grande diferença, como dissemos, entre
parricídio e homicídio), me voltarei para o povo em geral. A quantos - pensai
nisso - desses aglomerados de pessoas investindo em busca de sangue Cristão, a
quantos, mesmo, de vossos governantes, notáveis por sua justiça para convosco e
por suas severas medidas para conosco, posso acusar perante sua consciência do
pecado de condenar sua descendência à morte?
Se há alguma diferença no tipo de assassinato, a
forma mais cruel é certamente matar por afogamento ou exposição ao frio, à fome
e aos cães. Uma costume mais civilizado tem sempre preferido a morte pela
espada.
Em nosso caso, para os cristãos, a morte foi de uma
vez por todas proibida. Não podemos nem mesmo destruir o feto no útero, porque,
mesmo então, o ser humano retira sangue de outras partes de seu corpo para sua
subsistência. Impedir um nascimento é simplesmente uma forma mais rápida de
matar um homem, não importando se mata a vida de quem já nasceu, ou põe fim a
de quem está para nascer. Esse é um homem que está se formando, pois tendes o
fruto já em sua semente.
Com relação a alimentos de sangue e de outros tão
macabros pratos - Eu não estou seguro onde li isto, em Heródoto, penso - o
sangue tirado dos braços e bebido por ambas as partes, constituía um aval ao
tratado entre algumas nações. Não estou certo se foi assim bebido no tempo de
Catilina. Dizem, também, que entre algumas tribos citas os amigos são comidos
por seus amigos. Mas estou indo longe demais de casa.
Atualmente, mesmo entre vós, o sangue consagrado a
Bellona, sangue retirado da coxa perfurada e então partilhada, sela a iniciação
aos ritos daquela divindade. Que dizer daqueles, também, que nos espetáculos
dos gladiadores, para a cura da epilepsia, bebem com gananciosa sede o sangue
dos criminosos mortos na arena, assim que corre fresco de seus ferimentos,
apressando-se para chegarem aos que lhes pertencem? E daqueles, também, que
fazem alimentos no sangue de feras selvagens no lugar dos combates - que têm
agudo apetite por ursos e veados? Na luta, esse urso foi molhado com o sangue
do homem dilacerado por ele; aquele veado rolou no sangue do gladiador ferido
pelas suas chifradas. As entranhas das próprias feras, embora misturadas com
indigestas vísceras humanas, são muito procuradas. E de vossos homens
disputando carne nutrida por carne humana?
Se vós partilhais de alimentos como esses, em que
vossos repastos diferem daqueles de que acusais a nós, cristãos? Aqueles que,
com luxúria selvagem, disputam corpos humanos, cometem menor mal porque devoram
os vivos? Estão menos contaminados do sangue humano porque degustam aquilo que
está para se tornar sangue? Eles se alimentam, isto é evidente, não tanto de
crianças, como de adultos.
Ruborizai-vos por vossos vis costumes perante os
cristãos, que não têm sequer o sangue de animais entre seus alimentos,
alimentos que são simples e naturais, que se abstêm de animais estrangulados ou
que morrem de morte natural. E isso pela única razão de que eles não querem se
contaminar, nem mesmo de sangue contido nas vísceras.
Para encerrar o assunto com um simples exemplo, vós
tentais os cristãos com lingüiças de sangue, exatamente porque estais
perfeitamente cientes de que assim tentais fazê-los transgredir o hábito que
eles consideram ilegal. E como é irracional acreditar que aqueles sobre os
quais bem sabeis que olham com horror a idéia de beber o sangue de bois,
estejam ansiosos por sangue de homens. Isso a não ser que vós tenhais saboreado
o sangue humano e o achastes mais gostoso!
Sim, realmente, eis aqui um teste que podereis
aplicar para descobrir os cristãos, bem como a panela e o censor. Eles poderiam
ser testados pelo seu apetite por sangue humano, tanto quanto por sua recusa de
oferecer sacrifícios. E assim como poder-se-ia afirmar serem cristãos por sua
recusa de beber sangue e sua recusa de oferecer sacrifícios, não haveria
necessidade de sangue de homens, tão solicitado como é nas torturas e na condenação
dos prisioneiros cristãos.
Ora, quem se entrega mais ao crime de incesto do
que aqueles que seguem as instruções do próprio Júpiter? Césio nos diz que os
persas mantêm relação carnal ilícita com suas mães. Os macedônios, igualmente,
são suspeitos do mesmo; porque ouvindo pela primeira vez a tragédia de Édipo,
eles coroaram com mirto o incesto, com exclamações em sua língua.
Ainda atualmente, reflitam quantas oportunidades
existem para erros que vos levem a uniões incestuosas - vosso promíscuo relaxamento
fornece essas oportunidades. Antes de tudo, abandonais vossas crianças que
podem ser levadas por qualquer transeunte compadecido, para os quais elas são
totalmente desconhecidas; ou as entregais para serem adotados por aqueles que
podem cumprir melhor para elas o papel de pais. Bem, com algum tempo toda a
memória do parentesco alienado pode ser esquecida; e quando se faz um erro, a
transmissão do incesto poderá até ocorrer - o parentesco e o crime caminhando
juntos. Pois, mais tarde, onde estejais, em casa ou fora, nos mares - vossa
luxúria está à vossa disposição, com indulgência geral, ou mesmo com uma menor
indulgência, e podeis facilmente, e não propositadamente, procriar em algum
lugar uma criança, de modo que dessa maneira um parente lançado na corrente da
vida poderá vir a ter relação carnal com aqueles que são de sua própria carne,
sem ter noção que está ocorrendo incesto no caso.
Uma castidade perseverante e firme nos tem
protegido de algo assim, pois, resguardando-nos, como fazemos, de adultérios e
todas as infidelidades após o matrimônio, não estamos expostos a infortúnios
incestuosos. Alguns de nós - tornando o assunto ainda mais seguro - nos
abstemos inteiramente do pecado sensual, pela continência virginal; mesmos
meninos nossos tomam tal decisão quando ficam adultos. Se tiverdes notícia de
que tais pecados que mencionei existem entre vós, examinem e vejam que eles não
existem entre os cristãos.
Os mesmos olhos poderão constatar ambos os fatos.
Mas as duas cegueiras caminham juntas. Aqueles que não vêem o que acontece,
pensam que vêem o que não acontece. Demonstrarei como ocorre assim em qualquer
assunto. Mas, por enquanto deixai-me falar de assuntos que são mais
importantes.
» CAPÍTULO X
Vós nos acusais: “Não adorais os deuses e não
ofereceis sacrifícios aos imperadores”.
Sim, não oferecemos sacrifícios a outros pela mesma
razão pela qual não os oferecemos a nós mesmos, ou seja, porque vossos deuses
não são, de modo algum, referenciais para nossa adoração. Por isso, somos
acusados de sacrilégio e de traição. Esse é o principal fundamento de vossa
perseguição contra nós. Sim, é toda a razão de nossa ofensa. É digna, então, de
exame a respeito, se não forem nossos juizes a prevenção e a injustiça, pois a
prevenção não leva a sério descobrir a verdade, e a injustiça a rejeita simples
e totalmente.
Não adoramos vossos deuses porque sabemos que não
existem tais divindades. Eis o que, portanto, deveríeis fazer: deveríeis nos
intimar a demonstrar a inexistência delas, e, então, provar que elas não
merecem adoração, pois somente se vossas divindades fossem comprovadamente
verdadeiros deuses, haveria toda obrigação de lhes serem rendidas homenagens
divinas.
Punição, igualmente, mereceriam os cristãos, se
ficasse evidente que aqueles aos quais recusam adoração são verdadeiramente
divinos. Vos dizeis: são deuses. Nós negamos e apelamos para vosso próprio
entendimento a respeito. Que ele nos julgue, que ele nos condene, se é incapaz
de negar que todas essas vossas divindades não passam de pessoas humanas.
Se vosso entendimento se atreve a negar isso, será
refutado por vossos próprios livros de histórias primitivas, pelos quais tomou
ciência delas, pois esses livros se constituem incontestáveis testemunhas até
nossos dias, seja das cidades onde elas nasceram, seja das regiões nas quais
elas deixaram marcas de suas andanças, bem como, comprovadamente elas foram
enterradas.
Examinarei agora, um por um, a esses vossos deuses
tão numerosos e tão diferentes, novos e antigos, gregos, romanos, estrangeiros,
de escravos e de adotados, privados e públicos, machos e fêmeas, rurais e
urbanos, marítimos e militares? Não. É inútil até pesquisar todos os seus
nomes, de modo que me contento com um resumo, e isso não para vossa informação,
mas para que tenhais em mente o que colocastes em vossa coleção, porque
indubitavelmente agis como se tivésseis esquecido tudo sobre eles.
Nenhum de vossos deuses é mais antigo do que
Saturno. Dele fizestes provir todas as vossas divindades, mesmo aquelas de
maior dignidade e mais conhecidas. O que, então, puder ser provado sobre o
primeiro, poderá ser aplicado àqueles que dele provieram.
De tempos tão primitivos quanto nos informam os
livros, nem o grego Diodoro ou Thallos, nem Cássio Severo nem Cornélio Nepos,
bem como nenhum outro escritor que escreveu sobre as coisas sagradas
primitivas, se aventurou a dizer que Saturno era alguém mais senão um homem.
Tanto quanto esse assunto depende dos fatos, nada mais encontro digno de fé do
que isso: sabemos o local no qual Saturno se estabeleceu na própria Itália,
após muitas expedições e após compartilhar da hospitalidade da Ática, obtendo
cordiais boas vindas de Jano ou Janis como os Sálicos o chamavam. A montanha na
qual ele morou foi chamada Satúrnio. A cidade que ele fundou foi denominada
Satúrnia até aos nossos dias. Por fim, toda a Itália, após ter surgido com o
nome de Enótria, foi chamada Satúrnia por causa dele. Foi ele que por primeiro
vos ensinou a arte de escrever e de cunhar moedas. Daí, aconteceu que ele
passou a governar o Tesouro Público.
Mas, se Saturno foi um homem, teve, sem dúvida, uma
origem humana e tendo uma origem humana não foi rebento nascido do céu e da
terra. Como seus pais eram desconhecidos, não era incomum que tenha se chamado
filho desses elementos dos quais nós todos parecemos nos originar.
Quem não fala do céu e da terra como de um pai e de
uma mãe numa forma de veneração e homenagem? Não há até o costume, ainda
existente entre nós, de dizer que alguém que nos é estranho ou que surgiu
inesperadamente em nosso meio caiu dos céus? Do mesmo modo, aconteceu com
Saturno, onde apareceu como um hóspede repentino e inesperado - porque o
hóspede recebe em todo o lugar a designação de nascido do céu. Mesmo a tradição
popular chama de filhos da terra as pessoas de parentesco desconhecido.
Eu não sei quantos homens naqueles tempos
primitivos eram levados a assim procederem quando admirados pela visão de
alguém estranho que surgia em seu meio, considerando-o divino, já que naquelas
eras distantes até homens de cultura transformavam em deuses pessoas que eles
sabiam terem morrido como homens, um dia ou dois antes, movidos pela tristeza
geral que lhes acometia.
Que essas observações de Saturno, tão concisas como
são, sejam suficientes. Assim, também, pode-se provar que Júpiter era
certamente homem, já que nascido de homem, e que uma após outra, todas essas
divindades eram mortais como o primitivo rebento.
» CAPÍTULO XI
Já que não ousais negar que essas vossas divindades
foram homens e deveis aceitar que foram elevadas à divindade após sua morte,
examinemos no que isso implica.
Antes de tudo deveis confirmar a existência de um
Deus Altíssimo - alguém possuidor da divindade - que concedeu a tais homens a
divindade. Pois que eles não poderiam assumir uma divindade que não lhes
pertencesse e somente um Deus que a possuísse poderia conferi-la a alguém. Se
não houvesse Alguém para criar divindades, seria inútil, também, sonhar em
divindades criadas pois não existiria o seu Criador.
Certamente, se elas pudessem se tornar divindades
por si mesmas, com uma divindade superior governando-as, elas nunca teriam se
tornado homens.
Se, então, há Alguém que é capaz de criar
divindades, eu volto a examinar qual razão que a levaria a criá-las. Não
encontro outra razão senão de que o Deus Supremo precisava de administradores e
ajudantes para exercer os ofícios de Deus. Mas, primeiramente, é uma idéia
indigna pensar que Ele precisasse de ajuda de um homem, e, ainda, de um homem
morto. Se Ele tivesse necessidade de assistência, poderia mais apropriadamente
ter criado uma divindade desde seu nascimento. Depois, nem sequer vejo algum
motivo para tal.
Pois todo esse universo, se existente por si mesmo
e incriado, como afirma Pitágoras, ou criado por forças de um Criador, como
afirmou Platão, foi, incontestavelmente, já, em sua organização original,
programado, dotado, ordenado e governado com uma sabedoria perfeita. Não
poderia ser imperfeito Alguém que tudo fez perfeito.
Ninguém estaria esperando por Saturno e sua raça
para assim fazê-lo. Os homens ficam loucos quando se recusam a acreditar que o
primeiríssimo impulso nasceu do céu, e, então, as estrelas piscaram, a luz
brilhou, os trovões rugiram, e o próprio Júpiter temeu os relâmpagos que pondes
em suas mãos. O mesmo aconteceu com Baco, Ceres e Minerva, e não somente com o
primeiro homem, quem quer que tenha sido, ante os quais toda espécie de frutos
brotaram abundantemente do interior da terra, providenciados tão somente para
prover e sustentar o homem que depois disso pôde existir.
Em consonância, dizem que essas necessidades da
vida foram descobertas, não criadas. As coisas que alguém descobre, já antes
existem, e o que tem uma preexistência não deve ser visto como pertencente
àquele que o descobriu mas àquele que o criou, porque certamente esse Ser
existia antes daquilo que poderia ser descoberto.
Se Baco foi elevado à divindade porque foi o
descobridor do vinho, entretanto Lúculo que primeiro introduziu a cerejeira do
Ponto na Itália não o foi porque, como descobridor de uma nova fruta, não se
arrogou o mérito de ter sido seu criador nem de se galardoar com honras
divinas.
Portanto, se o universo existiu desde o início
provido de seu sistema, agindo sob determinadas leis para a execução de suas
funções, não há nenhuma razão para constituir a humanidade em divindade, porque
as situações e poderes que atribuís a vossas divindades existiram desde o
começo, exatamente como deveriam ser, embora não as tenhais nunca deificado.
Mas apontais outra razão, dizendo-nos que a
atribuição de divindade foi um meio dignificá-las. E daí sois concordes,
concluo, de que o Deus que é Deus é de transcendente retidão - Alguém que não
quer nem insensata, nem inadequada, nem desnecessariamente outorgar uma
recompensa tão grande.
Pediria que, então, considerásseis se as atitudes
de vossas divindades são de tal qualidade que as elevassem aos céus e não antes
as submergissem no mais profundo do Tártaro - o lugar que considerais, como a
maioria, como um cárcere de punições eternas. Ora, pois que nesse lugar temível
são dignos de ser lançados todos aqueles que pecam contra a piedade filial,
assim como os culpados de incesto com irmãs e sedutores de viuvas, os raptores
de virgens e corruptores de menores, os homens de temperamentos furiosos, os
assassinos, os ladrões, os enganadores, todos, em resumo, que seguem os
exemplos de vossas divindades.
Não, porém, alguém que pode provar estar inocente
de crimes e vícios, a não ser o de afirmar que essas divindades foram sempre
humanas. Além de não poderdes negar isso, tendes, também, em seus desalmados
crimes mais uma razão para não acreditardes que tenham sido elevados à
divindade após sua morte. Porque se legislais com verdadeiro propósito de punir
tais crimes, se cada homem virtuoso dentre vós se nega a ter qualquer
correspondência, conversa, intimidade com os culpados e vis, como, diferentemente,
o Deus Altíssimo os tomaria seus pares para compartilhar de sua Majestade? Em
que posição ficaria se fosse companheiro daqueles aos quais adorais?
Vossas deificações é uma afronta aos céus.
Deificais vossos mais vis criminosos quando quereis agradar vossos deuses. Vós
os honrais concedendo honras divinas a seus companheiros.
Mas para não mais falar de uma maneira de agir tão
indigna, há homens virtuosos, puros e bons. Contudo, quantos desses homens
nobres não relegastes às regiões da condenação? Como fizestes a Sócrates, tão
renomado por sua sabedoria; Aristides, por sua justiça; Temístocles, por sua
boa sorte; Creso por sua riqueza; Demóstemes por sua eloquência. Qual dos
vossos deuses é mais notável por sua seriedade e sabedoria do que Catão; mais
justo e combatente do que Cipião? Qual deles mais magnânimo do que Pompeu; mais
próspero do que Silas; de maior riqueza do que Creso, mais eloqüente do que
Túlio?
Quão mais digno seria para o Deus Supremo esperar
que Ele pudesse tomar tais homens para serem seus pares celestes, sabedor como
Ele deve ser de suas mais dignas qualidades! Ele está em vexame, suponho, e
fechou os portões celestes. Agora, certamente sente vergonha por cauda dessas
sumidades que estariam a murmurar, nas regiões infernais, contra sua escolha.
» CAPÍTULO XII
Mas, deixo de lado essas observações, porque sei e
vou mostrar o que vossas divindades não são, mostrando o que realmente são. Com
referência, então, a eles, examinarei somente nomes de homens falecidos dos
tempos antigos. Ouvi histórias fabulosas. Reconheci ritos sagrados cercando
simples mitos. Relacionando-os às imagens atuais, vejo-os como simples peças
materiais assemelhadas aos vasos e utensílios de uso comum entre vós, ou mesmo
consagrados por uma malfadada troca com aqueles úteis objetos nas mãos de
descuidada arte, que no processo de transformação os tratou com absoluto
desprezo, se não, com verdadeiro ato de sacrilégio.
Dessa forma não poderíamos ter o menor conforto em
todos os nossos castigos, padecendo como padecemos por causa desses mesmos
deuses, porque em sua formação sofreram como nós sofremos. Pondes os cristãos
em cruzes e estacas: Que estátua não é primeiro formada de barro e depois
plasmada numa cruz ou numa estaca? O corpo de vosso deus é primeiro consagrado
num estrado. Dilacerais os corpos dos cristãos com vossas garras, mas no caso
de vossos próprios deuses, machados, plainas e limas são utilizadas mais
vigorosamente em cada membro de seus corpos. Colocamos nossas cabeças sobre o
cepo. No entanto, o prumo, a cola e os pregos são utilizados em vossas
divindades que de início não têm cabeça. Somos lançados às feras selvagens, enquanto
as pondes juntas a Baco, Cibele e Celeste. Somos queimados no fogo; assim
também eles, em seu original material. Somos condenados às minas; delas
provieram vossos deuses. Somos banidos para as ilhas; é comum a vossos deuses
nelas nascerem ou morrerem.
Se este é o meio pelo qual se faz uma divindade,
segue-se que são punidas enquanto são deificadas e serão torturadas para serem
declaradas divindades. Mas é evidente que esses objetos de vossa adoração não
sentem as injúrias e as desgraças antes de sua consagração, como também não
tomam consciência das honras que lhes são prestadas.
Ó palavras ímpias! Ó acusações blasfemas! É de
ranger os dentes contra nós - espumem com louca raiva contra nós - somos as
pessoas, sem dúvida, que censuraram um certo Sêneca que falou de vossas
superstições longamente e muito mais agudamente! Numa palavra: se recusamos
nossa homenagem a estátuas e imagens frígidas, de fato uma reprodução de seus
originais falecidos, com os quais convivem falcões, ratos e aranhas, não merece
isso louvor em vez de castigo? Que rejeitemos isso que acabamos de examinar é
erro? Não fazemos certamente injúrias àqueles que estamos certos de serem
nulidades. O que não existe está em sua inexistência livre do sofrimento.
» CAPÍTULO XIII
“Mas eles são nossos deuses”, dizeis. Como pode ser
isso, pois com absoluta inconsistência, estais cientes de vossa ímpia,
sacrílega e irreligiosa conduta para com eles; menosprezais aqueles que
imaginais que existam, destruindo aqueles que são objetos de vosso medo,
fazendo pouco caso daqueles cuja honra quereis vingar?
Vede se agora estou mentindo. Em primeiro lugar,
certamente, constatando que apenas adorais um ou outro deus, certamente
ofendeis àqueles que não adorais. Não podeis dar preferência a um sem desprezar
o outro, pois a seleção de um implica na rejeição do outro. Desprezais,
portanto, aqueles que rejeitais, porque na vossa rejeição a eles se evidencia
que não temeis em ofendê-los.
Como já demonstramos, toda divindade vossa depende
da decisão do Senado quanto à sua deificação. Ninguém seria deus a não ser que
o homem em seu próprio arbítrio não o tivesse desejado; assim, igualmente,
rejeitado. Às divindades da família que chamais “Lares” concedeis uma
autoridade doméstica, orando a elas, vendendo-as, trocando-as, fazendo às vezes
fogo com Saturno, alimentando um braseiro com Minerva, se acontece que um ou
outro esteja estragado ou quebrado por seu longo uso sagrado, ou se o chefe da
família está premido por alguma necessidade familiar mais sagrada.
Assim, também, por lei pública, levais à desgraça
vossos deuses oficializados, colocando-os no catálogo de leilão, tornando-os
fontes de renda. Os homens sobem ao Capitólio, como vão ao mercado popular
levados pela voz do pregoeiro, fazendo o lance do leilão, com o registro do
questor. A divindade é leiloada e arrematada pela mais alta oferta. Mas,
certamente, só terras oneradas com impostos são de menor valor, só homens
sujeitos à avaliação de impostos são menos nobres, porque bens assim indicam
estado de servidão.
No caso das divindades, por outro lado, a santidade
é grande em proporção aos tributos que sobre elas são cobrados. Quanto mais
sagrada a divindade, maior a taxa que paga. A majestade se torna uma fonte de
ganho. A Religião procede como os pedintes de tavernas. Cobrais preço pelo
privilégio de ficar num templo, por acesso aos cultos sagrados, não se recebe
conselhos gratuitos de vossas divindades - necessitais comprar seus favores.
Que honras lhes concedeis que não concedais aos
mortos? Possuís templos tanto para uns como para outros, construís altares
tanto para uns como para outros. Suas estátuas são vestidas da mesma maneira,
com as mesmas insígnias. Assim como os falecidos tinham sua idade, sua arte,
suas ocupações, assim as tinham vossas divindades. Em que a festa de funeral
difere da festa de Júpiter? O símbolo das divindades daquele dos manes? Ou o
empreiteiro do funeral do vaticinador, se, realmente, o último também trata de
mortos?
Com perfeita propriedade dais honras divinas a
vossos imperadores quando morrem, já que os adorais em vida. Os deuses ficam em
dívida convosco, pois é causa de grande regozijo entre eles que seus mestres
sejam constituídos em seus pares.
» CAPÍTULO XIV
Desejaria rever agora vossos ritos sagrados. Deixo
passar sem censuras o fato de em vossos sacrifícios ofertardes coisas
estragadas, imprestáveis, podres, quando separais a gordura, as partes sem uso,
tais como a cabeça e os cascos, que em vossas casas destinais aos escravos ou
aos cães; quando do dízimo de Hércules não colocais sequer um terço sobre o
altar.
Sou levado mais a louvar vossa sabedoria em
aproveitá-las para não as jogar fora. Mas, voltando a vossos livros dos quais
tirais vossos ensinamentos de sabedoria e os nobres deveres da vida, que coisas
ridículas ali encontro: que os deuses troianos e gregos brigaram entre eles
como gladiadores, que Vênus foi ferida por um homem porque ela queria resgatar
seu filho Êneas, quando estava ameaçado de perigo de vida pelo próprio
Diomedes; que Marte definhou preso por treze meses; que Júpiter foi salvo pela
ajuda de um monstro de padecer a mesma violência nas mãos de outros deuses; que
ele agora lamenta o destino de Sarpédon, ora cortejando loucamente sua própria
irmã, lhe falando sobre antigas amantes, não tão amadas como ela.
Depois disso, que poeta não imita o exemplo de seu
Mestre? Um entrega Apolo ao rei Admeto para cuidar de suas ovelhas; um outro
aluga o trabalho de construtor de Netuno a Laomedonte. Um conhecido poeta
lírico, também, Píndaro, aliás, canta sobre Esculápio merecidamente ferido com
um raio por pratica incorreta de sua arte, por ambição. Uma má ação foi essa de
Júpiter: se arremessou um raio desnaturado contra seu avô, demonstrando
sentimento de inveja contra o médico. Coisas semelhantes não deveriam ser
tornadas públicas, se verdadeiras; e, se falsas, não deviam ser levadas ao
povo, que professa um grande respeito pela religião. Nem também, certamente, os
escritores, trágicos ou cômicos, deveriam denunciar os deuses como origem de
todas as calamidades e pecados das famílias.
Não examinarei os filósofos, contentando-me com uma
referência a Sócrates que, por desprezo aos deuses, tinha o hábito de jurar por
um carvalho, por uma cabra ou por um cão. De fato, exatamente por isso,
Sócrates foi condenado à morte, pois subestimava a adoração aos deuses. Num
tempo ou noutro, ou seja, sempre, a verdade não é amada. Contudo, quando
sentiram remorso pelo julgamento de Sócrates, os atenienses aplicaram punição a
seus acusadores, e ergueram uma imagem de ouro dele num templo; a condenação
foi nessa ocasião reconsiderada, e a inocência dele restaurada em seus
anteriores méritos.
Diógenes, igualmente, zombou de Hércules; e o
cínico romano Varro se fez proceder de trezentas imagens de Júpiter, que foram
conhecidas todas como sem cabeças.
» CAPÍTULO XV
De vossos escritores, outros, em seus
desregramentos sempre vos proporcionam prazeres vilipendiando os deuses. Vede
aquelas encantadoras farsas de Lêntulo e Hostílio se nas brincadeiras e
facécias não são os bufões e as divindades que vos causam divertimentos. Farsas
assim, penso, levam-nos ao ridículo, como a de Anúbio, o adúltero, Luna, do
sexo masculino, Diana debaixo do chicote, as interpretações dos desejos de
Júpiter falecido e os três famigerados Hércules.
Vossa literatura dramática, igualmente, retrata as
vilezas de vossos deuses. O Sol lamenta seus filhos expulsos do céu e vós
ficais cheios de júbilo. Cibele procura seu insolente namorado e vós não
corais. Levais à cena o recital dos delitos de Júpiter, e do pastor que julga
Juno, Vênus e Minerva.
Novamente, quando a máscara de um deus é posta na
cabeça de um ignominioso e infame miserável, quando alguém impuro e
experimentado na arte de toda efeminação que seja representa Minerva ou
Hércules, não é a majestade de vossos deuses insultada e sua divindade
desonrada? Contudo vós não somente assistis a isso, como aplaudis.
Sois, suponho, mais devotos na arena quando sob a
mesma forma vossas divindades dançam sobre o sangue humano, sobre os ferimentos
causados pelas punições infligidas, como se interpretassem suas histórias e
aventuras, cedendo sua vez aos pobres condenados, com a diferença de que esses
muitas vezes se colocam como a divindade e no momento representam os próprios
deuses.
Temos visto presentemente uma representação da
mutilação de Átide, o famoso deus de Pessino, e de um homem queimado vivo como
Hércules. Faz-se gozação em meio a burlescas crueldades na exibição do
meio-dia, com Mercúrio examinando os corpos dos mortos com sua lança ardente.
Temos testemunhado o irmão de Júpiter, com malho na mão, rebocando os cadáveres
dos gladiadores.
Mas quem pode assistir a tudo isso? Se por tais
coisas a honra da divindade é atacada, se estão a macular qualquer traço de sua
majestade, temos de entender isso como desprezo com os quais os deuses tratados
por aqueles que ora fazem tais coisas e, igualmente, por aqueles para cujo
divertimento são feitas. Isto, todavia, dizem, é tudo brincadeira.
Mas, acrescento - todos sabeis e admitis
prontamente como fatos que nos templos são arranjados adultérios, que nos
altares são praticadas alcovitices, que muitas vezes nas casas dos guardas dos
templos e dos sacerdotes, sob os ornamentos de sacrifícios, sob sagradas tiaras
e sob as vestimentas púrpuras, em meio das ondas de incenso, são praticados
crimes de licenciosidade.
Então, não estou seguro, mas vossos deuses têm mais
razão de se queixarem de vós do que dos cristãos. Ë certamente entre os devotos
de vossa religião que sempre se encontram os perpetradores de sacrilégios;
porque os cristãos não entram em vossos templos nem mesmo durante o dia.
Talvez queirais, também, ser exploradores dos
deuses, já que os adorais. O que , então, vos levam a adorar, uma vez que os
objetos de adoração são diferentes de vós? Fica, de fato, logo evidenciado como
corolário de vossa rejeição à hipocrisia, que rendeis homenagem à verdade. Não
perseverais no erro que criastes pelo simples fato de reconhecerdes que isso é
um erro.
Aceitai isso, antes de mais nada, e após termos
apresentado uma refutação preliminar de alguns conceitos falsos, continuaremos
apresentando todo nosso sistema religioso.
» CAPÍTULO XVI
Juntamente como outros, estais na ilusão de que
nosso Deus é uma cabeça de asno. Cornélio Tácito foi o primeiro a divulgar tal
noção entre o povo. No 5o livro de sua História, começa a narrativa da guerra
judaica com um relato da origem da nação, teorizando a seu bel prazer sobre
essa origem, tanto quanto sobre o nome e sobre a religião dos judeus. Declara
que tendo sido libertados ou ainda, em sua opinião, expulsos do Egito, cruzando
as vastas planícies da Arábia, onde a água era escassa, os judeus enfrentaram a
sede extrema, mas, tomando por guia asnos selvagens que, imaginavam, podiam
estar procurando água depois de se alimentarem, descobriram uma fonte. Desde
então, em sua gratidão, passaram a sacralizar a cabeça de um animal dessa
espécie.
Como a cristandade está aliada ao judaísmo, por
isto, suponho, aceitastes gratuitamente que nós também éramos devotos
adoradores da mesma imagem. Mas o citado Cornélio Tácito (em completa oposição
ao significado de seu nome - ficar calado e não contar mentiras), informa, na
obra já mencionada, que quando Cneio Pompeu capturou Jerusalém, penetrou no
templo para ver os segredos da religião dos judeus, mas não encontrou nenhuma
imagem ali. Contudo, certamente, se adoração era rendida a algum objeto
visível, o lugar exato de sua exibição deveria ser no santuário. Tudo o mais
além da adoração, embora irracional, não se fazia necessário ali para causar
medo a crentes do exterior, pois que só aos sacerdotes era permitido entrar no
lugar sagrado, enquanto toda visão era impedida aos demais por um cortinado
cerrado.
Não podeis negar, contudo, que todas as bestas de
carga e não partes delas, mas animais inteiros, são com sua deusa Epona objetos
de vossa adoração. É isso, talvez, que vos desagrada em nós, porque enquanto
vossa adoração aqui é a todos, nós prestamos homenagem somente ao asno.
Se alguns de vós pensais que rendemos adoração
supersticiosa à cruz, nessa adoração estais compartilhando conosco. Se dais
homenagem a uma peça de madeira, importa pouco qual ela seja, porque a substância
é a mesma: a forma é diferente, se nela tendes, de fato, o corpo de Deus.
Entretanto, quão diferente é do madeiro da cruz Palas Atenas ou Ceres, quando
levantadas para venda numa simples estaca bruta, peça de madeira sem forma!?
Cada estaca fixada em posição vertical é um pedaço da cruz. Nós rendemos nossa
adoração, se quereis assim, a um Deus inteiro e completo.
Mostramos antes que vossas divindades são feitas de
formas modeladas na cruz. Mas vós também cultuais as vitórias, porque em vossos
troféus a cruz é o sustentáculo do troféu. A religião dos acampamentos romanos
é toda dirigida ao culto de estandartes, uma coleção de estandartes acima de
todos os deuses. Bem, aquelas imagens mostradas nos estandartes são ornamentos
de cruzes que as sustentam. Todas aquelas coisas penduradas em vossos
estandartes e bandeiras são vestes das cruzes. Eu louvo vosso zelo: vós não
prestais culto a cruzes desvestidas e desornadas.
Outros, de novo, certamente com mais informação e
maior veracidade, acreditam que o sol é nosso deus. Somos confundidos com os
persas, talvez, embora não adoremos o astro do dia pintado numa peça de linho,
tendo-o sempre em sua própria órbita. A idéia , não há dúvidas, originou-se de
nosso conhecido costume de nos virarmos para o nascente em nossas preces. Mas,
vós, muitos de vós, no propósito às vezes de adorar os corpos celestes moveis
vossos lábios em direção ao oriente.
Da mesma maneira, se dedicamos o dia do sol
(Domingo) para nossas celebrações, é por uma razão muito diferente da dos
adoradores do sol. Temos alguma semelhança convosco que dedicais o dia de
Saturno (Sábado) para repouso e prazer, embora também estejais muito distantes
dos costumes judeus, os quais certamente ignorais.
Mas, ultimamente a nova versão de nosso Deus foi dada
a conhecer ao mundo nessa grande cidade: originou-se com um certo homem
desprezível que tinha costume de se dedicar a trapacear com feras selvagens, e
que exibiu uma pintura com esta inscrição: O Deus dos Cristãos nasceu de um
asno. Ele tem orelhas de asno, tem casco num pé, segura um livro e usa uma
toga. Tanto o nome como a figura nos provoca risos.
Mas nossos inimigos devem ter sido levados a logo
prestar homenagem a essa divindade biforme, porque eles conhecem deuses com
cabeça de cachorro e de leões, com chifres de bode e carneiro - como um corpo
com pernas de dragão, com asas nas costas ou patas. Tais coisas temos
esclarecido exaustivamente, porque não podemos de boa vontade deixar passar
nenhum boato contra nós sem refutação.
Tendo explicado exaustivamente sobre nós mesmos,
voltamos agora a uma demonstração de como é realmente nossa religião.
» CAPÍTULO XVII
O objeto de nossa adoração é um Único Deus que, por
sua palavra de ordem, sua sabedoria ordenadora, seu poder Todo-Poderoso, tirou
do nada toda a matéria de nosso mundo, com sua lista de todos os elementos,
corpos e espíritos, para glória de Sua majestade. A essa criação, por tal
razão, também os gregos lhe deram o nome de Cosmos.
Os olhos não podem vê-Lo, embora seja
(espiritualmente) visível. Ele é incompreensível, embora tenha se manifestado
pela graça. Está além de nosso mais elevado entendimento, embora nossas
faculdades humanas o concebam. Ele é, portanto, igualmente real e magnífico.
Mas o que, pelo senso comum, pode ser visto, percebido e concebido, é inferior
ao que Ele é, ao que d’Ele se percebe, ao que d’Ele as faculdades vislumbram.
Mas o que é infinito é conhecido somente por Ele
mesmo. Assim, damos alguma noção de Deus, enquanto, contudo, ele permanece além
de todas as nossas concepções - nossa real incapacidade de completamente
compreendê-Lo permite-nos ter a idéia do que Ele realmente seja. Ele se
apresentou ao nosso conhecimento em sua transcendental grandeza, sendo
conhecido e sendo desconhecido.
E tal coisa é a suma culpa dos homens, porque eles
não querem reconhecer o Único a quem não podem ignorar. Poderíeis ter a prova
pelas obras de Suas mãos, tão numerosas e tão grandes, que igualmente vos
contém e vos sustentam, que proporciona tanto vosso prazer quanto vos comove com
temor. Ou poderíeis melhor senti-lo pelo testemunho de vossa própria alma?
Embora sob o opressivo cativeiro do corpo, embora
transviada por costumes depravados, embora enfraquecida pela concupiscência e
paixões, embora na servidão de deuses falsos, contudo, quando a alma O procura,
libertando-se do tédio e do torpor, movida por uma doença, e consegue um pouco
de sua pureza natural, ela fala de Deus, não usando nenhum outro nome, porque
este é o nome próprio do verdadeiro Deus. “Deus é imenso e bom”, “Que possa
Deus dar”, são as palavras que brotam de cada boca. Dão testemunho d’Ele,
também, quando exclamam: “Deus vê”, “Eu me recomendo a Deus” e “Deus
me recompensará”.
Ó nobre testemunho da alma, por natureza cristã!
Então, igualmente, usando palavras semelhantes a essas, a pessoa olha não para
o Capitólio mas para os céus. Ela sabe que ali está o trono do Deus vivo, como
se d’Ele e dali tudo proviesse.
» CAPÍTULO XVIII
Mas, porque podemos alcançar um maior e mais
autorizado conhecimento tanto d’Ele mesmo quanto de Seus apelos e desejos, Deus
acrescentou uma revelação escrita para o proveito de todos aqueles cujos
corações se colocam à sua procura, que procurando podem encontrá-lO e
encontrando acreditar e acreditando obedecer-Lhe.
Porque primeiro Ele mandou mensageiros ao mundo -
homens cuja pura retidão os tornaram dignos de conhecer o Altíssimo e de
revelá-Lo - homens abundamtemente iluminados pelo Santo Espírito, que alto
proclamaram que há um só Deus que fez todas as coisas, que formou o homem do pó
da terra. Ele é o verdadeiro Prometeu que ordenou o mundo, estabelecendo as
estações em seu curso.
Aqueles homens mais provas ainda nos deram. Deus
mostrou Sua majestade em seus juízos, por inundações e fogo, nos mandamentos
indicados por Ele para se obter seu favor, assim como a retribuição guardada
para quem os ignora, os renega ou os guarda, pois que quando chegar o fim de
todas as coisas, julgará seus adoradores para a vida eterna e os culpados para
a mansão do fogo eterno e inextinguível, ressuscitando todos os mortos desde o
início dos tempos, reformando-os e renovando-os com o objetivo de premiá-los ou
castigá-los.
Um dia, tais coisas foram para nós, também, tema de
ridículo. Nós somos de vossa geração e natureza: os homens se tornam, não
nascem cristãos! Os pregadores dos quais temos vos falado são chamados
profetas, por causa do ofício que lhes pertence de predizer o que virá. Por sua
palavras, tanto quanto pelos milagres que fizeram, esses homens podem merecer
fé em sua autoridade divina.
Conservamos, ainda, em tesouros literários que
permanecem disponíveis a todos, o que eles transmitiram. Ptolomeu, dito
Filadelfo, o mais letrado de sua raça, uma homem de vasto conhecimento em toda
a literatura, que se iguala, acho, pelo seu amor aos livros, com Pisístrato,
entre outros, sobreviveu aos tempos, e, seja por sua antigüidade, seja por seu
peculiar interesse, se tornou famoso. Esse Ptolomeu, por sugestão de Demétrio de
Falero, que foi reconhecido superior a todos os gramáticos de seu tempo, lhe
entregou a tarefa de tratar do assunto relacionado aos escritos dos judeus.
Isto é, aos característicos escritos dos judeus e de sua língua, que somente
eles falavam, como povo querido de Deus, demonstrado isso na salvação de seus
antepassados, povo do qual os profetas sempre se provieram e ao qual sempre
pregavam.
Nos tempos antigos, o povo que chamamos judeus
usavam o nome de hebreus e falavam o hebraico, língua em que foram redigidos
seus escritos. Mas como para o entendimento de seus livros assim se fizesse
necessário, os judeus pediram a Ptolomeu que lhe deixassem indicar setenta e
dois tradutores, homens que o filósofo Menedemos, reconhecido como indicado por
uma Providência, aceitou com respeito, já que compartilhava de seus pontos de
vista.
A mesma história é contada por Aristos. Assim, o
rei desvendou aquelas obras a todos, na língua grega. Até nossos dias a
biblioteca de Ptolomeu se encontra à disposição de todos, no templo de Serápis,
na qual estão também os originais idênticos hebreus.
Os judeus, por sua vez, lêem esses livros
publicamente. Pagando uma taxa de liberação, têm o hábito de ir ouvi-los todos
os sábados. Quem quer que tenha ouvidos neles encontrará Deus, quem quer que se
aplica em entendê-los, será levado a crer.
» CAPÍTULO XIX
A grande antigüidade, antes de tudo, dá autoridade
àqueles escritos. Vossa religião, também, pede fé baseada no mesmo fundamento.
Sim, todas as substâncias, todos os materiais, as origens, classes, conteúdos
de vossos mais antigos escritos, além da maioria das nações e cidades ilustres
que recordam o passado e são notáveis por sua antigüidade nos livros de anais,
as próprias formas de vossas cartas, tudo que revela e conserva os acontecimentos,
e - penso que falo coerentemente - vossos próprios deuses, vossos próprios
tempos, oráculos e ritos sagrados são menos antigos do que a palavra de um
único profeta, no qual encontrareis o tesouro da integral religião judia e,
consequentemente, da nossa.
Caso tenhais ouvido falar de um certo Moisés,
digo-vos que ele é muitíssimo mais antigo do que o argeu Ínaco, em
aproximadamente quatrocentos anos. Ele é anterior a Dânaos, vosso mais antigo
nome. Antecedeu por um milênio a morte de Príamo. Posso afirmar, também, que
viveu quatrocentos anos antes de Homero, existindo fundamentos para essa
afirmação. Os outros profetas, também, embora de datas posteriores, são, mesmo
os mais recentes, tão antigos quanto o primeiro de vossos filósofos, legisladores
e historiadores.
Aqui faço apenas uma afirmação, não apresentando as
provas, não tanto porque isso é difícil, mas devido à amplitude da apresentação
de toda a fundamentação. O trabalho não seria somente árduo, mas sobretudo
tedioso. Requereria o apressado estudo de muitos livros, os dedos ocupados em
folheá-los.
As histórias das mais antigas nações, tais como dos
Egípcios, dos Caldeus, dos Fenícios teriam de ser exploradas. Igualmente teriam
de ser consultados para apresentarem seus testemunhos homens dessas várias
nações, com suas informações. Mâneto, o Egípcio, Beroso, o Caldeu, e Hierão, o
Fenício, rei de Tiro, assim como seus sucessores, Ptolemeu o Mendesiano,
Demétrio de Falero, O Rei Juba, Apião, Thallo, e o crítico de todos eles,
Josefo, da própria nação judia, o pesquisador da história antiga de seu povo,
que os confirma ou os refuta.
Igualmente, deveriam ser postas lado a lado as
listas dos censores gregos, e esclarecidas as datas dos acontecimentos, para
que as conexões cronológicas pudessem ser feitas, bem como usadas as narrativas
dos vários anais para lançar mais luz sobre o assunto. Deveríamos seguir
aprofundando as histórias e literaturas de todas as nações. Mas, de fato, já
vos trouxemos a prova parcial, fornecendo-vos as sugestões de como o estudo
poderia ser realizado.
Parece-nos melhor deixarmos para outra ocasião a
discussão disso tudo, com receio de que em nossa pressa não possamos
aprofundá-lo suficientemente, ou de que no manuseio disso tudo façamos uma
digressão demasiadamente extensa.
» CAPÍTULO XX
Para concluir nossa digressão, transmitimo-vos isto
de maior importância. Apontamo-vos o poder de nossas Escrituras, se não por sua
antigüidade, no caso de duvidardes que sejam tão antigas como dizemos, pela
prova que damos de que são divinas. Assim, podereis vos convencer disso de uma
vez por todas, sem que nos estendamos mais.
Vossos mestres, o mundo, a antigüidade e os
acontecimentos estão todos à vossa vista. Tudo aquilo que vos cerca, estou na
vossa dianteira anunciando. Tudo o que vos cerca e agora vedes foi previamente
anunciado. Tudo o que agora vedes já foi anteriormente predito aos ouvintes
humanos. A destruição de cidades da terra, a submersão de ilhas pelos mares,
guerras que trouxeram convulsões internas e externas, o embate de reinos contra
reinos, as epidemias de fome e de pestes, os massacres em certos lugares, as
desolações disseminadas das mortalidades, a exaltação dos pobres e humildes
sobre os orgulhosos, a decadência da honestidade, a disseminação do pecado, os
instrumentos da ambição deslavrada dos bens, as próprias estações e atividades
elementares naturais escapando a seus normais cursos, monstros e prodígios
tomando o lugar de formas naturais - isso tudo foi previsto e predito antes que
acontecesse. Enquanto sofremos as calamidades, estamos lendo sobre elas nas
Escrituras. Se verificarmos, elas estão sendo confirmadas.
Sim, a verdade de uma profecia, julgo, é a
demonstração de seu acontecimento posterior. Daí termos entre nós uma fé
confirmada a respeito do eventos que vêm como coisas já confirmadas, porque
foram preditas e igualmente cumpridas em nosso dia a dia. Elas foram proferidas
pelas mesmas vozes, escritas nos mesmos livros - o mesmo Espírito as inspirou.
Constantemente há alguém predizendo os
acontecimentos futuros. O tempo é um só para a profecia que prediz o futuro.
Entre os homens, talvez, há uma distinção dos tempos, já que o seu cumprimento
vem depois. Sendo eventos do futuro, nós os consideramos como presentes e,
então, quando se fazem presentes, nós os consideramos como pertencendo ao
passado. Como podemos ser censurados, dizei-nos, porque acreditamos nas coisas
que virão como se já tivessem acontecido, com essas provas para nossa fé nesses
dois instantes.
» CAPÍTULO XXI
Agora, tendo confirmado que nossa religião está
fundamentada nas escrituras dos hebreus, as mais antigas que existem, embora
seja corrente e nós admitimos inteiramente que nossa religião date de um
período comparativamente recente - não anterior ao reino de Tibério, talvez,
devamos levantar a questão de suas bases, para não parecer que ocultamos sua
origem sob a sombra de uma ilustre religião, a qual possui, sob todos os
aspectos, indubitavelmente, a aceitação da lei.
Igualmente, além da questão da idade, não
concordamos com os judeus em suas particularidades com respeito à alimentação,
aos dias sagrados, nem mesmo no seu bem conhecido sinal da circuncisão, nem no
uso de um nome comum, o que, certamente, seria o caso, já que prestamos
homenagem ao mesmo Deus.
Igualmente, o povo comum tem algum conhecimento
sobre Cristo, mas não o considera senão um homem, alguém que, de fato, os
judeus condenaram, de modo que muitos naturalmente imaginaram que somos
adoradores de um simples ser humano.
Mas não estamos nem envergonhados de Cristo -
porque nos alegramos de sermos contados entre seus discípulos e de sofrermos
por seu nome - nem divergimos dos judeus com relação a Deus.
Faremos, portanto, uma observação ou duas quanto à
divindade de Cristo. Nos tempos antigos os judeus muito gozaram do favor de
Deus, quando os predecessores de sua raça se notabilizaram por sua honestidade
e fé. Assim foi que floresceram muitíssimo como um povo e seu reino atingiu uma
eminência sublime. Tão abençoados eram que para sua instrução Deus lhes falou
através de especiais revelações, indicando-lhes antes de tudo como deviam se
fazer merecedores de Seu favor e de como evitar Seu desagrado.
Mas, caíram profundamente no pecado, se
ensoberbeceram na sua fé com a falsa confiança em seus nobres ancestrais,
desviando-se do caminho de Deus para um caminho de transviada impiedade, e
embora eles se neguem a reconhecer isso, sua ruína nacional atual poderia ser
prova suficiente do ocorrido.
Dispersos mundo afora, como uma raça de errantes,
exilados de sua própria terra e clima, vagam por todo o mundo sem um rei humano
ou divino, não possuindo nem mesmo o direito que têm os estrangeiros de andarem
em seu país nativo.
Os escritores sagrados, contudo, lhes tinham
advertido previamente dessas coisas, todos com igual clareza, e até declararam
que, nos últimos dias do mundo, Deus, de todas as nações, povos e países,
escolheria Seus próprios e mais fiéis adoradores, aos quais conferiria Sua
graça. Faria isso mais amplamente, preservando-os com o poder de uma concessão
mais sublime.
Fielmente, Ele apareceu entre nós, conforme fora
previamente anunciado, para renovar e iluminar a natureza humana. Refiro-me a
Cristo, o Filho de Deus. E assim o Senhor supremo, o Ministrador dessa graça e
modo de vida, o Iluminador e Mestre da raça humana, Filho do próprio Deus, se
fez anunciar como tendo nascido entre nós. Nascido, porém, de forma a não se
envergonhar do nome de Filho ou de Sua origem paterna.
Não foi seu destino provir de Seu pai através de
incesto com uma irmã, ou de violação de uma filha ou da esposa de outro, um
deus na forma de serpente, ou de boi, ou de pássaro, ou de um amante, de modo
que sua baixeza o transformasse no ouro de Dânaos. Assim são vossas divindades
sobre as quais recaíram tais crimes de Júpiter.
Mas o Filho de Deus não teve mãe que, em nenhum
sentido, fosse envolvida em impureza. Aquela que os homens têm por Sua mãe,
pelo contrário, nunca teve relacionamento nupcial. Mas, primeiro, falarei sobre
Sua natureza essencial e, então, a natureza de Seu nascimento poderá ser
compreendida.
Já afirmamos que Deus fez o mundo e tudo o que ele
contem, por Sua Palavra, Razão e Poder. É plenamente aceito que vossos
filósofos também têm em vista o Logos - isto é, a Palavra e a Razão - como o
Criador do universo. Zenão explicou que ele é o criador, tendo feito todas as
coisas de acordo com determinado plano, que seu nome é o Destino, e Deus, e a
alma de Júpiter, e a necessidade de todas as coisas. Cleanto atribui tudo isso
ao espírito que, segundo afirma, pervade o universo.
E nós, de maneira semelhante, afirmamos que a
Palavra, a Razão e o Poder, com as quais denominamos Deus tudo criou, é
espírito com sua substância própria e essencial, da qual a Palavra provem como
expressão, e a razão habita para dispor e arranjar, e o poder se sobressai para
executar.
Aprendemos que a Palavra procede de Deus, e nessa
processão Ela é gerada, de modo que Ela é o Filho de Deus, e é Deus, em unidade
e em mesma substância com Deus. Em Deus, igualmente, há um Espírito.
Mesmo quando o raio é lançado do sol, é ainda parte
da massa que o gerou. O sol ainda está no raio, porque é um raio do sol. Não há
divisão de substância mas simplesmente uma extensão. Assim Cristo é Espírito do
Espírito, Deus de Deus, Luz da Luz. O material matriz permanece inteiro e não
diminuído, embora dele derive qualquer número de raios, possuindo suas
qualidades.
Assim, também, Aquele que provem de Deus é por sua
vez Deus e Filho de Deus, e os dois são um só. Dessa maneira, como Ele é
Espírito do Espírito, Deus de Deus, Ele é gerado como segundo no modo de
existência - na posição, não na natureza. Ele não é criado pela fonte original,
mas dela foi gerado.
Este raio de Deus, então, como foi sempre previsto
nos tempos antigos, desceu sobre uma virgem, e se fez carne em seu ventre; é em
Seu nascimento juntamente Deus e homem. A carne informada pelo Espírito é
alimentada, cresce até tornar-se adulto, fala, prega, trabalha - é o Cristo.
Acolha, por enquanto, esta fábula se assim
quiserdes chamá-la. É uma concepção vossa, enquanto continuaremos a mostrar
como a reivindicação de Cristo foi provada, e como as versões de vosso
conhecimento pelas quais tais fábulas foram apresentadas para destruir a
verdade, se assemelham.
Os judeus, também, estiveram preocupados de que
Cristo tivesse vindo, eles aos quais os profetas falaram. Mas não, ainda agora
Seu advento continua sendo esperado por eles. Não há nenhuma dissensão entre
eles e nós, senão que eles acreditam que o advento ainda não aconteceu. Pois
duas vindas de Cristo nos foram reveladas: a primeira que já se cumpriu na
baixeza do destino humano, uma segunda que pende sobre o mundo, agora perto de
seu fim, com toda a majestade da Divindade desvelada.
Por interpretarem mal a primeira vinda, os judeus
concluíram que a segunda - objeto de predição mais manifesta, e na qual colocam
suas esperanças - seria a única. Isto foi o castigo devido a seus pecados - não
compreenderem a primeira vinda do Senhor - porque eles a tiveram, mas nela não
quiseram acreditar. Se tivessem acreditado, poderiam ter obtido salvação.
Eles próprios leram o que foi escrito a seu
respeito - que estão privados da sabedoria e do entendimento - do uso de seus
olhos e de seus ouvidos. Assim, então, sob a força de sua rejeição se
convenceram a si próprios desse seu baixo procedimento: que Cristo não foi mais
do que um homem, seguindo-se, como conseqüência necessária, que tivessem Cristo
na conta de mágico, devido aos Seus poderes que demonstrou - expulsando demônios
dos homens por sua palavra, restaurando a visão aos cegos, limpando os
leprosos, curando os paralíticos, trazendo de novo à vida quem já estava morto,
fazendo com que os próprios elementos da natureza o obedecessem, amainando as
tempestades e andando por sobre o mar, provando que era o Logos de Deus, aquela
primordial Palavra de todo o sempre gerada, acompanhada pelo Poder e Razão e
vinda pelo Espírito - Aquele que agora faz todas as coisas pelo poder de sua
Palavra e Aquele que fez que do anterior proviesse um e o mesmo.
Mas os judeus ficaram tão exasperados com seus
ensinamentos, pelos quais seus governantes e chefes se convenceram da verdade,
principalmente porque muitíssimos O seguiram, que, por último, O levaram ante
Pôncio Pilatos, naquele tempo governador da Síria. Então, pela violência de
seus gritos contra Ele, obtiveram uma sentença entregando-lhes Cristo para ser
crucificado. O próprio Cristo havia predito tudo isso, o que teria pouco
sentido se não tivessem os profetas antigos dito a mesma coisa.
E, no entanto, pregado na cruz, Cristo manifestou
muitas maravilhas admiráveis pelas quais Sua morte foi diferente de todas as
outras. Por Sua livre vontade, com uma palavra fez entrega de seu Espírito,
antecipando o trabalho dos carrascos. Na mesma hora, também, a luz do dia
feneceu, enquanto o sol naquele momento, exatamente, estava fulgurando no seu
meridiano. Aqueles que não estavam cientes de que isso tinha sido predito sobre
Cristo, pensaram, sem dúvidas, que era um eclipse. Vós mesmos tendes ainda registro
em vossos arquivos desse fenômeno da natureza.
Quando seu corpo foi descido da cruz e colocado
numa sepultura, os judeus em seu ansioso cuidado cercaram-na com uma grande
guarda militar, uma vez que Cristo havia predito Sua ressurreição da morte no
terceiro dia. Seus discípulos poderiam secretamente retirar seu corpo e, assim,
enganar os incrédulos. Mas, no terceiro dia houve um repentino abalo de
terremoto e a pedra que selava a sepultura rolou de seu lugar. Os guardas
fugiram com medo. Não havendo nenhum discípulo por perto, a sepultura foi
encontrada totalmente vazia exceto pelo sudário daquele que fora ali sepultado.
Mas, assim mesmo, os chefes dos judeus, a quem de
perto interessava espalhar uma mentira e, por suas crenças, conservar o povo
sob tributos e submissão, disseram que o corpo de Cristo tinha sido roubado
pelos discípulos de Cristo. Quanto ao Senhor, vede, não apareceu à vista do
público, para que os culpados não se livrassem de seus erros, porque a fé,
também, merecedora de uma grande recompensa, se fundamenta na dificuldade. Mas
Ele ficou quarenta dias com muitos de Seus discípulos, na Galiléia, uma região
da Judéia, instruindo-os nas doutrinas que deveriam ensinar aos outros.
Depois disso, tendo lhes dado o encargo de pregarem
a boa nova em todo o mundo, Ele foi cercado por uma nuvem e subiu aos céus - um
acontecimento muitíssimo mais certo do que as afirmações de vossos procônsules
a respeito de Rômulo.
Todas essas coisas Pilatos fez a Cristo, e agora,
realmente, os cristãos têm suas próprias convicções. Pilatos escreveu sobre
Cristo ao Imperador reinante que era, na época, Tibério. Sim, e os Imperadores
também teriam acreditado em Cristo, caso os Imperadores não tivessem sido
necessários ao mundo, ou se os cristãos pudessem se tornar Imperadores.
Seus discípulos, espalhando-se pelo mundo afora,
fizeram o que Seu Divino Mestre dissera, e após sofrerem muito, eles próprios,
com as perseguições dos judeus, com generosidade de coração, mantendo a fé na
verdade, por último, semearam pela cruel espada de Nero, com sangue cristão, a
sede de Roma.
Sim, provarei que mesmo vossos próprios deuses são
testemunhas efetivas em favor de Cristo. Seria de grande importância, para
colocardes vossa fé nos cristãos, se eu pudesse vos demonstrar a autoridade dos
próprios seres por conta dos quais recusais dar-lhes créditos.
Eis que vos desvendamos a fé em que nos
fundamentamos. Expusemos a origem e o nome de nossa seita, com esse relato do
Fundador do Cristianismo. Que ninguém, doravante, nos acuse com infame maldade,
que ninguém pense que algo seja diferente do que apresentamos, para que ninguém
possa fazer um falso conceito dessa religião.
Pois se alguém adora um outro Deus, diferentemente
do que diz, se torna culpado de negar o objeto de sua adoração, transfere sua
adoração e homenagem a outro, e nessa transferência deixa de adorar o Deus que
a repudia.
Afirmamos, clamamos diante de todos os homens, e
dilacerados, sangrando debaixo de vossas torturas, gritamos: “Nós adoramos Deus
por Cristo.” Tende Cristo como um homem, se assim vos agrada. Por Ele e n’ Ele
Deus desejaria ser conhecido e adorado.
Se os judeus objetam a isso, respondemos que
Moisés, que não foi senão um homem, foi quem lhes ensinou sua religião. Contra
os gregos argüimos que Orfeu em Piéria, as Musas em Atenas, Melampo em Argos,
Trofônio na Beócia, impuseram seus ritos religiosos. Respondendo a vós próprios
que costumais oscilar entre as nações, foi um homem, Numa Pompílio, que impôs
aos romanos um pesado fardo de custosas superstições.
Certamente Cristo, então, tem direito de revelar a
Divindade que era, de fato, Sua própria essencial possessão, não com o objetivo
de manipular ignorantes e selvagens com o temor de uma multidão de deuses,
cujos favores deveriam resultar numa civilização, como foi o caso com Numa, mas
como alguém que gostava de iluminar os homens já civilizados e sob ilusões de
sua própria cultura, para que eles pudessem conhecer a verdade.
Pesquisai, pois, e vede se a divindade de Cristo é
verdadeira. Se é de tal natureza que o seu acolhimento transforma o homem e o
faz melhor, implicando isso no dever de renunciar como falso o que se lhe opõe.
Especialmente se oculta ele próprio, sob o nome e a imagem da morte, seus
esforços para convencer os homens de sua divindade, através de sinais
especiais, milagres e predições.
» CAPÍTULO XXII
Também afirmamos, com certeza, a existência de
certos seres espirituais, cujos nomes não vos são desconhecidos. Os filósofos
admitem que existem demônios. O próprio Sócrates esperou pela vontade de um
demônio. Por que não? Uma vez que se diz que um espírito mau estava
especialmente ao seu lado desde sua juventude - que, sem dúvidas, desviava sua
mente do que era bom. Todos os poetas estão, também, de acordo com a existência
dos demônios.
Mesmo o povo comum, ignorante, costuma chamá-los
quando praguejam. De fato, o povo chama por Satanás, o líder dos demônios, em
suas execrações, como se dele tivesse um conhecimento instintivo. Platão admite
a existência de anjos. Os que praticam a magia, se apresentam como testemunhas
da existência de ambas as espécies de espíritos.
Somos instruídos, ainda, por nossos livros
sagrados, de como certos anjos, que se degradaram por sua própria liberdade,
originaram uma família de anjos maus, condenados por Deus juntamente com os
promotores dessa degradação. A tal líder, acima já nos referimos. Isso seria
suficiente para o momento, contudo, temos alguns relatos de suas obras. A
grande tarefa deles é levar à ruína os homens de boa vontade. Assim, por sua
própria maldade espiritual procuram nossa destruição.
Nesse sentido, infligem males a nossos corpos e
outras calamidades mortais, quando com violentos ataques impelem a alma a
repentinos e enormes excessos. Sua prodigiosa sutileza e espiritualidade lhes
dão acesso a ambas as partes de nossa natureza. Como espíritos, não podem nos
ferir; e porque, invisíveis e intangíveis, não tomamos conhecimento de suas
ações exceto por seus efeitos, assim como quando algum desconhecido veneno na
brisa arruina as maçãs e os grãos quando ainda em floração, ou os matam no
botão, ou os destroem quando alcançam a maturidade, como se fosse por uma
atmosfera corrompida por meios desconhecidos, espalhando por toda a parte suas
exalações pestilenciais.
De semelhante modo, também, por uma influência
igualmente obscura, os demônios sopram dentro das almas e as incitam à
corrupções com paixões furiosas e excessos vis, ou com cruéis concupiscências,
acompanhadas de vários erros, dos quais o pior é aquele empenho pelos quais
tais espíritos se dedicam a enganar e iludir os seres humanos para obterem seu
próprio alimento de carne, vapores e sangue que são oferecidos às imagens dos
ídolos.
Que alimento mais perverso para o espírito do mal
do que afastar as mentes humanas do verdadeiro Deus com as ilusões de sua falsa
divindade?
Aqui vos exponho como tais ilusões são realizadas.
Esses espíritos possuem asas. Essa é uma propriedade comum tanto aos anjos como
aos demônios. Assim, eles estão em todo lugar, a cada momento; o mundo todo é
um único lugar para eles. Tudo o que é feito no espaço do mundo, para eles se
torna fácil tanto de conhecer como de relatar. Sua sutileza de movimento é
tomada como coisa divina, porque sua natureza é desconhecida. Assim eles são
tidos, muitas vezes, como autores de coisas que então proclamam. Muitas vezes,
não há dúvida, as coisas ruins são de sua autoria, nunca o bem.
Os propósitos de Deus, igualmente, eles souberam
pelos pronunciamentos dos profetas, logo que eles os faziam. Eles os espionam
ainda através de suas obras, quando os ouvem ler em voz alta. Então, obtendo
por essa fonte algumas afirmações sobre o futuro, se posicionam como próprios
rivais do Deus verdadeiro, enquanto se apropriam do conhecimento divino. Vossos
Creso e Pirro bem conhecem a habilidade com as quais suas respostas parecem
prever os acontecimentos. É assim que explicamos porque Píton estava apto a
declarar que eles estavam cozinhando uma tartaruga com a carne de um cordeiro.
Num segundo, ele estava na Lídia.
Porque moram nos ares e por causa de sua
proximidade das estrelas e suas comunicações com as nuvens, eles têm meios de
saber os processos preparatórios que ascendem a essas elevadas regiões e,
assim, podem prometer as chuvas, das quais já tinham conhecimento. Muito
hábeis, também, não há dúvidas, são com respeito a curar as doenças.
Primeiramente, eles vos fazem adoecer. Depois, para demonstrar um milagre,
ordenam a aplicação de remédios seja um remédio novo, seja um inabitual, e
rapidamente retirando sua influência mal-sã, se tornam conhecidos como
realizadores de uma cura.
Que necessidade, então, de falar de seus outros
artifícios ou poderes ilusórios que possuem como espíritos, como daquelas
aparições de Castor, da água carregada numa peneira, de um navio que ultrapassa
uma barreira, da barba irritada por um toque, tudo feito com o propósito de mostrar
que os homens deveriam acreditar na divindade de pedras, e não procurar o único
Deus verdadeiro?
» CAPÍTULO XXIII
Ainda mais, se feiticeiras invocam espíritos, e
mesmo fazem que apareçam as almas dos mortos, se matam crianças com o propósito
de obterem uma resposta dos oráculos, se com suas ilusões de prestidigitação
têm a pretensão de fazerem vários milagres, se iludem com sonhos a cabeça do
povo pelo poder de demônios, cuja ajuda pediram, por cuja influência,
igualmente, cabras e mesas se tornam algo divino - quanto mais não é este poder
do mal zeloso em fazer com todas as suas capacidades, a favor de seu próprio
propósito, e por seus próprios meios, o que serve aos objetivos de outros!
Ora se anjos e demônios fazem exatamente o que
vossos deuses fazem, onde nesse caso está a preeminência da divindade, a quem
devemos considerar estar acima de todos em poder? Não seria, então, mais
razoável afirmar que esses espíritos se fazem de deuses, apresentando como
apresentam, provas reais que exaltam vossos deuses, do que afirmar que os
deuses são iguais aos anjos e demônios? Fazeis uma distinção de lugares,
suponho, olhando como deuses em seus templo aqueles cuja divindade não
reconheceis de modo algum. E observe-se a loucura de considerar como diferentes
um homem que sai dos templos sagrados e um outro que sai do templo ao lado. E
de se considerar sob domínio de um furor diferente aquele que corta seus braços
e intimidades e aquele que corta sua garganta. O resultado da loucura é o mesmo
e a forma de instigação também.
Mas há tempo estamos argumentando somente com
palavras. Agora trataremos de apresentar provas dos fatos, pelas quais
mostraremos que sob diferentes nomes tendes uma mesma e real identidade.
Leve-se uma pessoa que está inquestionavelmente sob possessão demoníaca, ante
vossos tribunais. O espírito mau ordenado a falar por um seguidor de Cristo
prontamente fará a confissão verdadeira de que ele é um demônio, assim como, de
outro modo, ele falsamente afirmará que é uma divindade. Ou, se quereis assim,
que a pessoa seja possuída por uma divindade, como supondes que seja, a qual
aspirando junto ao altar recebeu a divindade pelos vapores, quando estava em
ânsias de vômito, em espasmos de respiração.
Vede se a própria Celeste, a prometera de chuva,
que Esculápio descobridor de remédios pronto a prolongar a vida de Socórdio,
Tanácio e Asclepiódolo, agora no além, se eles não confessariam, perante o
sangue derramado do mais indigno seguidor de Cristo, em seu medo de mentir a um
cristão, que são demônios. O que seria mais evidente do que uma tal
comprovação? O que mais verdadeiro do que tal prova? A simplicidade da verdade
será então comprovada. Sua própria dignidade a sustentará. Não haverá mais lugar
para a mínima suspeita. Direis que isso será feito por mágica, ou por algum
truque - mas de que sorte?
Não podereis dizer nada disso, se vos permitirdes o
uso de vossos ouvidos e olhos. Que argumento podereis levantar contra uma coisa
que é exibida aos olhos em sua realidade nua? Se, por outro lado, eles são
realmente deuses, porque pretendem ser demônios? É por medo de nós? Nesse caso,
vossa divindade está sob sujeição dos cristãos, e certamente nunca podeis
chamar de divindade àquela que está sob a autoridade do homem e de seu próprios
inimigos (mesmo levando em conta a desgraça da possessão).
Se, por outro lado, eles são demônios ou anjos
maus, por que sem provas para isso, ousam se promoverem agindo com as
prerrogativas dos deuses? E como seres que se promovem como divindades, não
poderiam nunca de boa vontade se confessarem demônios, se fossem de fato
divindades, porque não poderiam abdicar de sua dignidade. Esses que sabeis ser
não mais do que demônios, não ousariam agir como deuses, se aqueles de cujos
nomes se apropriam, usando-os, fossem realmente divinos. Pois que não ousariam
tratar com desrespeito a majestade suprema dos seres divinos, cujo desagrado
lhes seria temível.
Assim, essas vossas divindades não são divindades,
porque se fossem não iriam querer passar por demônios, e não iriam querer ver
negada sua divindade. Mas desde que de ambas as partes há um conhecimento
concorrente de que não são deuses, resta concluirmos que não formam senão uma
única família, ou seja, a família dos demônios, a raça verdadeira de uns e
outros.
Procurai, então, doravante, deuses, pois que
constatastes serem espíritos do mal aqueles que tínheis imaginado serem deuses.
A verdade é, então, como demonstramos de nosso
próprio Deus, porque nem ele mesmo nem nenhum outro reivindica sua divindade.
Igualmente, podereis ver, então, de uma vez por todas quem é realmente Deus, e
se Ele é Aquele Único a quem nós cristãos servimos. E, também, se estais dispostos
a acreditar n’Ele e a adorá-Lo, como o fazemos em nossa fé e disciplina
cristãs.
Mas, então, dirão: Quem é este Cristo com suas
fábulas? É um homem comum? É um feiticeiro? Foi seu corpo roubado por seus
discípulos de seu túmulo? Está agora nos reinos inferiores? Ou antes não está
nos céus, de onde virá de novo, fazendo todo mundo tremer, enchendo a terra com
mortais clamores, fazendo todos, exceto os cristãos, se lamentarem - como o
Poder de Deus, o Espírito de Deus, a Palavra, a Razão, a Sabedoria, como o
Filho de Deus?
Zombai como gostais de fazer, mas juntai-vos aos
demônios, se assim quereis, em vossas zombarias. Que eles neguem que Cristo
virá para julgar cada alma humana que já existiu desde o início do mundo,
revestindo-os dos corpos deixados por ocasião da morte. Que eles declarem isso,
digo, ante vosso tribunal, porque este poder tem sido atribuído a Minos e
Radamanto, como Platão e os poetas afirmam. Que eles afastem de si pelo menos a
marca da ignomínia e da condenação.
Eles discordam de que sejam espíritos impuros.
Contudo temos isso como indubitavelmente provado por seu gosto pelo sangue,
pelos vapores e carcassas fétidas de animais sacrificados, e mesmo pela
linguagem vil de seus ministros. Que eles neguem isso, porque por sua maldade
já condenada, estão livres, de fato, daquele dia do julgamento, com todos os
seus adoradores e todas as suas obras.
Porque toda a autoridade e poder que temos sobre
eles vem do nome de Cristo, nossa denominação, relembrando-lhes as desgraças
com as quais Deus os ameaça pelas mãos de Cristo como Juiz, e com as quais os
cristãos esperam um dia surpreendê-los. Temendo Cristo em Deus, e Deus em
Cristo, os cristãos se tornam submissos servos de Deus e Cristo.
Assim, ao nosso toque e sopro, esmagados pelo pensamento
e realização daquele fogo do julgamento, deixarão sob nosso comando seus
corpos, contra a vontade e desamparados, diante de vossos próprios olhos
expostos à vergonha pública. Acreditais neles quando eles mentem. Dai crédito a
eles quando falam a verdade acerca deles mesmos. Ninguém diz mentira para
trazer desgraça sobre sua própria cabeça, mas antes pela salvação da honra.
Estais mais prontos a afirmardes algo ao povo,
mesmo fazendo confissões contra as divindades, do que a negardes algo em
interesse do próprio povo. Não é coisa rara que esses testemunhos de vossas
divindades convertam os homens ao Cristianismo. Pois que acreditando plenamente
neles, ficamos livres para acreditar em Cristo.
Sim, vossos próprios deuses põem fé em nossas
Escrituras, eles fizeram crescer nossa esperança. Vós também os honrais, como
sabemos, com o sangue dos cristãos. Despropositadamente perdem aqueles que lhes
são tão úteis e tão temerosos deles, ansiosos mesmo que vos resistam, e a não
ser num dia ou outro consigais desbaratá-los - como se sob o poder de um
seguidor de Cristo que deseja vos provar a Verdade, lhes fosse possível de
algum modo mentirem.
» CAPÍTULO XXIV
A explanação inteira desse assunto pelas quais se
deduz que eles não são deuses, e que não existe senão um Deus - o Deus que
adoramos - é perfeitamente suficiente para nos isentar do crime de traição,
principalmente contra a religião romana. Pois, se está claro que tais deuses
não existem, não há religião, no caso. Se não existe religião - porque esses deuses
não existem - somos certamente inocentes de qualquer ofensa contra a religião.
Em vez disso, a responsabilidade recai sobre vós.
Por adorardes uma mentira, sois de fato culpados do crime de que nos acusais,
não simplesmente porque recusais a verdadeira religião do verdadeiro Deus, mas
porque ousais perseguí-Lo. Mas, concedendo que esses seres objetos de vossa
adoração sejam realmente divindades, não se deve reconhecer universalmente que
há um Deus mais elevado e mais poderoso, como ordenador principal do mundo,
dotado de poder e majestade absolutos?
De modo usual, se atribui a Deus um poder imperial
e supremo, enquanto suas tarefas são distribuídas por muitas divindades, como
Platão descreve a respeito do supremo Júpiter habitando nos céus, cercado por
uma organização de divindades e demônios. Convém-nos, portanto, mostrar igual
respeito aos procuradores, prefeitos e governadores do Império divino. E por
maior crime que alguém cometa, quando, entre nós, uma transgressão capital está
restrita à apelação da mais alta autoridade, ninguém além de César, tal pessoa
delega seus esforços e suas esperanças a outro, com o objetivo de obter um
maior favor do Imperador. Ele não sai declarando que o apelo a Deus ou ao
Imperador depende somente do Supremo Senhor.
Que um homem adore Deus, outro a Júpiter; que um
levante as mãos suplicantes para os céus, outro para o altar de Fides; outro
(se tendes esse ponto de vista) faça sua prece às nuvens, outro aos objetos do
teto; que um consagre sua própria vida a seu Deus, e outro a uma cabra. Por ver
que não dais importante valor à acusação de irreligião, proibindo a liberdade
religiosa ou a escolha livre de uma divindade, não sei como não posso adorar de
acordo com minha inclinação, mas sou obrigado a adorar contra ela. Nem também
um ser humano gostaria de receber homenagem prestada a contragosto, e assim os
próprios egípcios receberam permissão para o uso legal de sua ridícula
superstição, liberdade para fazer de pássaros e feras seus deuses, assim como
para condenar à morte quem quer que mate um deus dessa espécie.
Mesmo cada província e cada cidade tem seu deus. A
Síria tem Astartéia, a Arábia tem Dusares, os Nórdicos têm Beleno, a África tem
sua Celeste, a Mauritânia também suas próprias dignidades. Eu falei, penso, das
Províncias Romanas, e contudo não falei que seus deuses são romanos. Pois que
eles não são adorados em Roma, tanto quanto outros que são listadas como
divindades em toda a própria Itália por consagração municipal, como Delventino
de Cassino, Visidiano de Narnia, Ancária de Áusculo, Nórcia de Orvieto,
Valência de Ocrículo, Hóstia de Sátrio, o Pai Curls de Falisco, em honra do
qual, também, Juno recebeu seu sobrenome.
De fato, somente nós somos proibidos de ter uma
religião própria nossa. Ofendemos aos romanos, somos excluídos de direitos e de
privilégios dos romanos porque não adoramos os deuses de Roma. Seria bom que
houvesse um único Deus para todos, do qual todos fôssemos adoradores,
quiséssemos ou não. Mas com vossa liberalidade permitis adorar qualquer deus
exceto o verdadeiro Deus, como se Ele não fosse o Deus que todos devessem
adorar, ao qual todos pertencem.
» CAPÍTULO XXV
Eu penso que ofereci prova suficiente sobre a
questão da falsa e da verdadeira divindade, mostrando que a prova está não simplesmente
fundamentada em debate ou argumento, mas no testemunho dos próprios seres em
quem pondes a vossa fé, de modo que esse assunto não precisa mais de discussão.
Contudo, tendo começado a naturalmente falar dos
romanos, não posso evitar a controvérsia que é provocada pela divulgada
afirmação daqueles que afirmam que, como uma recompensa de sua singular
homenagem à religião, os romanos progrediram a tais alturas de poder que se
tornaram senhores do mundo. E, portanto, são certamente divinas os deuses que
adoram, porque prosperam acima dos outros aqueles que sobrepujam todos os
outros na honra às divindades. Isso, certamente, é o preço que os deuses
pagaram aos romanos por sua devoção. O progresso do Império deve ser atribuído
a Estérculo, a Mutuno e Larentina.
Pois que dificilmente poderia pensar que deuses
estrangeiros estivessem dispostos a favorecer mais uma raça estrangeira do que
à sua própria, e entregar sua própria terra, na qual nasceram, na qual se
tornaram adultos, ficaram famosos, e, enfim, foram enterrados, em benefício de
invasores do outras plagas. Assim Cibele, se põe suas afeições na cidade de
Roma, como herdeira da progênie troiana salva dos exércitos da Grécia, ela
própria sendo, certamente, da raça troiana - como se previsse sua transferência
para o povo vingador pelo qual a Grécia, conquistadora da Frígia, seria
subjugada, e o preferisse mais do que a seu país natal conquistado pela Grécia.
Por que, igualmente, em nossos dias, a Mãe Magna
(Cibele) deu uma notável prova de sua grandeza, conferindo como que uma dádiva
à cidade, quando, logo após a perda da estátua de Marco Aurélio, em Sírmio, no
dia 17 antes das Calendas de Abril, o mais sagrado de seus sacerdotes havia
oferecido, uma semana depois, libações impuras de sangue retirado de seus
próprios braços, e ordenado que preces usuais deveriam ser feitas pela saúde do
imperador, já morto.
Ó mensageiros tardios! Ó correio dorminhoco! Por
cuja falta Cibele não recebeu uma notícia atualizada da morte imperial, para
que os cristãos não tivessem oportunidade de ridicularizar uma divindade tão
indigna. Júpiter, de novo, nunca deveria ter permitido que sua própria Creta
caísse, de repente, diante das forças romanas, esquecido totalmente daquele
caverna amada e dos címbalos das festas de Cibele, e do doce odor daquela que
ali o amamentou.
Não queria Júpiter que seu próprio túmulo fosse
exaltado sobre o Capitólio inteiro, porque, preferencialmente, a terra que
cobriu suas cinzas poderia vir a ser a senhora do mundo? Desejaria Juno a
destruição da cidade Púnica, amada a ponto de negligenciar Samos, e isso por
uma nação primitiva? Sim, eu sei, “aqui estavam seus exércitos, aqui estava
sua carruagem, este reino, porque permitam os fados, a deusa desejava e sonhava
ser a senhora das nações”. A malfadada mulher e irmã de Júpiter não tinha
poder para prevalecer contra os fados! “Júpiter mesmo foi ajudado pelo fado”.
E contudo os romanos nunca prestaram tal homenagem aos fados! Eles que lhes
deram Cartago contra o propósito e a vontade de Juno, assim como da abandonada
meretriz Larentina.
É indubitável que senão poucos de vossos deuses
tiveram poder na terra como reis. Se, então, eles agora possuem mais poder de
agraciar um Império do que quando eles mesmos eram reis, de quem receberam suas
honras reais? A quem Júpiter e Saturno adoravam? A um Estérculo, suponho. Mas,
os romanos primitivos junto com os nativos adoraram depois também a quem nunca
tinha sido rei? Nesse caso, então, estavam sob o reinado de outros, a quem
nunca sujeitaram, já que não se elevaram à liderança divina. Esta, então,
pertencia a outros, que podiam presentear os reinos, já que havia reis antes
daqueles deuses terem tido seus nomes no rol das divindades.
Mas que loucura agora é atribuir a grandeza do nome
romano aos méritos da religião, já que foi depois que Roma se tornou um
Império, ou, se quiserdes, um reinado, que a religião que ela professa promoveu
seu imenso progresso! É agora o caso? Foi sua religião a fonte da prosperidade
de Roma? Embora Numa Pompílio tenha estabelecido com ardor observâncias
supersticiosas, contudo a religião entre os romanos não constava, contudo, de
imagens ou templos. Era frugal em seus modos, seus ritos eram simples, não
havia capitólios ascendendo aos céus; mas os altares eram improvisados de
turfa, os vasos sagrados eram utensílios de barro do Sâmnio, deles vinha o odor
de rosa, e não se viam imagens de Deus.
Naquele tempo a habilidade dos Gregos e Toscanos na
confecção de imagens não tinha ainda chegado à cidade com os produtos de sua
arte. Os romanos, portanto, não foram conhecidos por sua devoção aos deuses
antes de terem alcançado a grandeza. Assim, sua grandeza não foi resultado de
sua religião. Como poderia a religião tornar grande um povo que deveu sua
grandeza à sua irreligião?
Pois que, se não estou errado, reinos e impérios
são adquiridos pelas guerras, e são ampliados por vitórias. Mais do que isso,
vós não podeis conquistar guerras e vitórias sem a presa e muitas vezes a
destruição de cidades.
Isto é uma calamidade na qual os deuses têm sua
parte de responsabilidade. Casas e templos sofreram, por isso, igualmente. Há
um indiscriminado morticínio de sacerdotes e cidadãos. A mão da rapina se
dirige igualmente ao tesouro sagrado e ao tesouro do povo. Assim os sacrilégios
dos romanos são tão numerosos como seus troféus. Eles se vangloriam tanto de
triunfos sobre os deuses como sobre as nações. Apropriam-se tanto de despojos
de batalha, como de imagens das divindades cativas.
Os pobres deuses se submetem a ser adorados por
seus inimigos, e ainda proporcionam um Império ilimitado àqueles de cujas mãos
receberam por retribuição mais injúrias do que homenagem simulada. Mas as
divindades inconscientes são desonradas impunemente, exatamente como são em vão
adoradas.
Certamente nunca podeis acreditar que a devoção à
religião fez evidentemente progredir a grandeza um povo que, como disse,
cresceu seja por injuriar a religião, seja ter uma religião injuriada por seu
crescimento.
Igualmente, aqueles cujos reinos se tornaram parte
desse grande todo que é o Império do Romano, não eram sem religião, quando seus
reinos lhes foram tomados.
» CAPÍTULO XXVI
Examinai e vede se Ele não é o dispenseiro dos
reinos, aquele que é simultaneamente o Senhor do mundo, por quem é governado, e
que governa os próprios homens; se Ele não fez as mudanças de dinastias, com
suas indicadas seqüências, que existiu antes de todos os tempos e determinou no
mundo uma continuidade de tempos. Se o soerguimento e a queda dos países não são
Sua obra, sob cuja soberania a raça humana primitivamente existiu sem nenhuma
país.
Como explicais que incidis em tal erro? Porque a
Roma de simplicidade rural dos tempos primitivos é mais velha do que muitos de
seus deuses. Ela reinou antes que seu orgulhoso e imenso Capitólio fosse
construído. Os babilônios também se constituíram em Império antes dos dias dos
pontífices, e os medas antes dos qüindecênviros. Os egípcios antes dos sálios.
A Assíria antes de Lupércio, e as amazonas antes das Virgens Vestais.
E para acrescentar outro ponto: se as religiões de
Roma lhe proporcionaram um Império, a antiga Judéia nunca teve um,
desprezando-o como fez com um e todos aqueles ídolos divinizados; a Judéia cujo
Deus, vós, romanos, certa vez honraram com vítimas, com presentes de seu
Templo, e com tratados de seu povo, ela nunca esteve sob vosso cetro, senão por
ocasião dessa última e final ofensa contra Deus, quando rejeitaram e
crucificaram Cristo.
» CAPÍTULO XXVII
Bastante já foi dito nessas explicações para refutar
a acusação de traição contra vossa religião e porque não podemos ser
considerados prejudiciais àqueles que não existem... Portanto, quando somos
convidados a sacrificar, recusamos resolutamente, apoiados no conhecimento que
temos, pelo qual estamos certos sobre a realidade dos seres aos quais esses
sacrifícios são oferecidos, sob a profanação de imagens e a deificação de seres
humanos.
Muitos, de fato, julgam isso um ato de insanidade,
pois estando em nosso poder oferecer logo o sacrifício e nos livrarmos do
castigo, mantemos nossas convicções; é que preferimos uma persistência
obstinada em nossa confissão, para nossa salvação. Vós nos avisais, é certo,
que assim estamos tirando vantagens de vós, mas sabemos de quem procedem tais
sugestões, quem está por trás disso, querendo vencer nossa constância, e como
faz todo esforço, agora com manhosa persuasão e depois com perseguição sem
piedade. Não é outro senão o espírito, meio demônio, meio anjo que, nos odiando
por causa de sua própria separação de Deus, levado pela inveja do favor que
Deus nos tem demonstrado, vira vossas mentes contra nós com influências
ocultas, moldando-as e instigando-as a todas as perversidades no julgamento, e
àquela crueldade indevida que mencionamos no começo de nosso trabalho, quando
iniciamos esta discussão.
Porque, embora todo o poder dos demônios e maus
espíritos nos esteja sujeito, contudo, como escravos, indispostos muitas vezes,
estão cheios de medo: assim são eles também. Por medo, também inspiram ódio.
Além disso, em sua condição desesperada, já que estão condenados, causa-lhes
algum conforto quando adiam o castigo e usufruem de suas disposições malignas.
No entanto, quando nossas mãos são levantadas contra eles, ficam subjugados de
repente, submissos a seu lugar; e àqueles a quem se opõem à distância,
reservadamente pedem misericórdia.
Assim, nas sedes rebeladas, em prisões ou minas, ou
em qualquer um desses locais para penas escravas, são aqueles que se revoltam
contra nós, seus senhores, sabendo sempre que não são ameaça para nós e,
exatamente por isso, de fato, se entregam mais renhidamente à destruição. Nós
lhes resistimos a contragosto, como se fossem nossos iguais, e os enfrentamos
perseverando naquilo que eles atacam.
Nosso triunfo sobre eles nunca é mais completo do
que quando somos condenados pela resoluta adesão à nossa fé.
» CAPÍTULO XXVIII
Mas sendo evidente a injustiça de compelir homens
livres, contra sua vontade, a oferecer sacrifício - porque mesmo em outros atos
de serviço religioso se requer uma mente de boa vontade - deveria ser tido por
total absurdo um homem obrigar outro a dar honras aos deuses, quando cada um
deve voluntariamente, pelo sentido de sua própria necessidade, procurar o favor
deles, para que, na liberdade que é seu direito, esteja pronto a dizer: “Não
preciso dos favores de Júpiter, a quem orais... Que Jano me venha com olhares
tristes em qualquer uma de suas faces, a que desejar... O que tendes a ver
comigo?”
Vós sois levados, não há dúvidas, por aqueles
mesmos espíritos maus que vos compelem a oferecer sacrifícios para o bem estar
do imperador; e ficais compelidos à necessidade de usar a força, da mesma forma
como estamos sob a obrigação de enfrentar os perigos disso. Somos conduzidos, agora,
à segunda base da acusação: somos culpados de traição contra a majestade muito
augusta, porque cuidais de dar homenagem com maior temor e a maior reverência
ao Imperador do que a ao próprio Júpiter Olímpico.
Mas - bem sabeis - procedeis com diferentes
fundamentos. É porque não há nenhum homem melhor do que aquele temível, seja
quem for? Mas isso não é feito por vós senão com base num poder cuja presença
vivamente sentis. Assim também nisso sois culpados de impiedade para com vossos
deuses, visto que mostrais uma maior reverência ao soberano humano do que aos
deuses. Daí, entre vós, o povo também jura falso mais facilmente pelo nome de
todos os deuses, do que pelo nome do supremo Imperador.
» CAPÍTULO XXIX
Esclareçamos, portanto, antes de mais nada, se
aqueles aos quais se oferecem sacrifícios estão aptos a proteger seja o
Imperador seja alguém mais, e assim nos julguem culpados de traição; se anjos
ou demônios, espíritos da pior natureza, podem realizar o bem, se o perdido
pode dar salvação, se o condenado pode dar liberdade, se o morto (refiro-me a
quem bem conheceis) pode defender o vivo...
Porque certamente a primeira coisa de que cuidariam
seria da proteção de suas estátuas, imagens e templos, e aquilo a que antes de
tudo deveriam sua segurança, ou seja, à vigilância dos guardas do Imperador.
Sim, penso, os próprios materiais de que são feitos provêm das minas do
Imperador, e não haveria um templo que não dependesse da vontade do Imperador.
Sim, e muitos deuses já sentiram o desagrado do Imperador.
Meu argumento é que eles são também participantes
do favor imperial, quando o Imperador lhes confere algum presente ou
privilégio. Como podem eles - que assim estão sob o poder do Imperador, que
pertencem inteiramente ao Imperador - ter a proteção do Imperador sob sua
responsabilidade, do modo que possais imaginá-los aptos a dar ao Imperador o que
eles mais prontamente recebem do Imperador?
Esta é, pois, a base na qual somos acusados de
traição contra a majestade imperial, a saber, não colocamos os imperadores
submissos às suas próprias propriedades; porque não oferecemos um simples
arremedo de culto à crença nessas divindades, como não acreditando que a
segurança dos imperadores permaneça em mãos metálicas. Mas sois ímpios a tal
ponto que procurais a divindade onde não está, que a procurais naqueles que não
a possuem, passando por Aquele que a possui inteiramente em Seu poder. Além
disso, perseguis aqueles que sabem onde procurá-La e que, sabendo onde
procurá-La, são capazes de também gozar de Sua segurança.
» CAPÍTULO XXX
Oferecemos preces pela segurança de nossos líderes
ao Eterno, ao Verdadeiro, ao Deus vivo, cujo beneplácito, acima de todos os
outros, eles próprios desejam. Eles sabem de quem receberam seu poder. Sabem,
já que são homens, de quem receberam a própria vida. Estão convencidos de que
Ele é o único Deus, de cujo único poder são inteiramente dependentes, de quem
são segundos, depois de Quem ocupam os mais altos cargos, antes e acima de
todas as divindades. Por que não são superiores à morte, já que estão acima de
todos os seres humanos, e vivendo como vivem?
Eles meditam sobre a extensão de seu poder e assim
vêm a compreender o Altíssimo. Reconhecem que possuem todo seu poder recebido
d’Ele contra o qual seu poder é nada.
Que o imperador faça guerra ao céu, que leve o céu
cativo em seu triunfo, que ponha guardas no céu, que imponha taxas ao céu! Ele
não pode! Exatamente porque ele é menor do que o céu, ele é grande. Pois ele
mesmo é d’Aquele ao qual o céu e todas as criaturas pertencem. Ele obteve seu
cetro quando lhe foi concedida sua humanidade. Seu poder, quando recebeu o
sopro da vida.
Para lá elevamos nossos olhos, com as mãos abertas,
porque livres do pecado, com a cabeça descoberta, porque não temos nada de que
nos envergonharmos, finalmente, sem um monitor porque é de nosso coração que
partem nossas preces.
Sem cessar, oferecemos preces por todos os nossos
líderes. Pedimos por uma vida longa, pela segurança do Império, para a proteção
da casa imperial, para os bravos exércitos, por um senado fiel, por um povo
virtuoso, e, enfim, por todo o mundo, seja quem for, homem ou Imperador, como
um imperador desejaria.
Essas coisas eu não posso pedir senão a Deus, de
quem sei que as obterei, seja porque somente Ele as concede, seja porque Lhe
peço sua dádiva, como sendo um servo Dele, rendendo homenagem somente a Ele,
perseguido por Sua doutrina, oferecendo a Ele, por Seu própria recomendação,
aquele custoso e nobre sacrifício de prece feito por um corpo casto, uma alma
pura, um espírito santificado, e não por alguns poucos grãos de incenso que
nada valem - extraído da árvore arábica - nem alguns pingos de vinho, nem o
sangue de alguma boi indigno para o qual a morte é um destaque, e, em adição a
outras ofensivas coisas, uma consciência poluída, de tal modo que alguém se
admira quando vossas vítimas são examinadas por aqueles sacerdotes vis. Por que
o exame é menor sobre o que sacrificam do que sobre os que são sacrificados?
Com nossas mãos assim abertas e levantadas para
Deus, nos entregamos a vossas claves de ferro, somos suspensos em cruzes,
lançados às chamas, temos decepadas nossas cabeças pela espada, somos entregues
aos animais selvagens: a verdadeira atitude de prece de um cristão é uma
preparação para todos os castigos.
Que esses bons administradores façam seu trabalho,
arranquem-nos a alma, implorando a Deus pelo bem estar do Imperador. Acima da
verdade de Deus e da devoção a Seu nome, ponde o estigma do crime.
» CAPÍTULO XXXI
Mas nós simplesmente, vocês dizem, lisonjeamos o
imperador e fingimos essas nossas orações para escaparmos da perseguição.
Obrigado por vosso engano, dando a nós a oportunidade de provar nossas
alegações. Aquele de vós que pensa que não nos importamos com o bem-estar de
César, investigue as revelações de Deus, examine nossos livros sagrados, os
quais nós não escondemos e que por muitas maneiras acabam parando nas mãos
daqueles que não são dos nossos. Aprenda através deles que uma grande
benevolência está sobre nós a ponto de suplicarmos a Deus por nossos inimigos e
desejarmos bênçãos a nossos perseguidores. Quem, portanto, são os maiores
perseguidores dos cristãos, senão as muitas festas com traições as quais somos
carregados. Além disso, muitas vezes e claramente a Escritura diz: “Reze pelos
reis, juízes e poderes, então tudo estará em paz com você”. Pois quando há
distúrbios no Império, se o tumulto é sentido por seus outros membros,
certamente nós também o sentimos, já que nós não somos dados à desordem.
» CAPÍTULO XXXII
Há também uma outra e grande necessidade para
oferecermos orações em favor dos imperadores, e não somente para a completa
estabilidade do Império e em favor dos interesses dos Romanos em geral. Pois
nós sabemos que o iminente choque de poderes em toda a terra é apenas retardado
pela contínua existência do Império Romano. Nós não temos desejo algum de
sermos tomados por esses terríveis eventos e em nossas orações, no desejo de
que esses eventos demorem a acontecer, colocamos em destaque nosso desejo de
continuidade do Império Romano. Além disso, enquanto nos recusamos jurar pelo
gênio de César, nós juramos por sua segurança, a qual é muito mais importante
que todo seu gênio. São vocês ignorantes do fato de que esses gênios são
chamados “Daimones”, e que o diminutivo “Daimonia” é aplicado a eles? Nós
respeitamos na pessoa do imperador a ordem de Deus, que o pôs acima das nações.
Nós sabemos que há isso neles o qual Deus tem legado; e a quem Deus legou essas
coisas nós desejamos toda segurança, e nós consideramos um juramento pela
segurança do imperador um julgamento muito importante. Mas para os demônios,
isso é, seus gênios, nós temos o hábito de exorcizá-los, não juramos por eles,
evitando dar a eles a divina honra.
» CAPÍTULO XXXIII
Mas por que se estender a respeito do sagrado
respeito e reverência que os cristãos dão ao imperador, o qual nós apenas
podemos reconhece-lo chamado por Deus ao seu serviço? Portanto, sob essas
condições devo dizer que César pertence mais a nós do que a vocês, pois nosso
Deus o escolheu. Portanto, tendo essa possibilidade, eu faço mais por seu
bem-estar, não simplesmente porque eu peço isso para Aquele que pode dar isso,
ou porque eu peço isso como alguém que merece, mas por que, em se tratando de
manter o poder de César em seus devidos limites e pondo isso sob o Excelso e
tornando isso menor que o divino, eu muito o recomendo a Deidade, a quem eu o
faço o único inferior. Mas eu o coloco em uma posição inferior a quem eu
considero mais glorioso que o imperador. Nunca irei chamar o imperador de Deus,
e isso porque não está em mim ser culpado de falsidade; ou porque eu não me
atrevo a expô-lo ao ridículo; ou porque ele mesmo não desejará ter esse alto
nome a ele aplicado. Se ele é somente um homem, é do seu interesse como homem
dar a Deus seu alto posto. Deixemos que ele pense sobre isso o suficiente para
suportar o nome de imperador. Chamá-lo de Deus é usurpar seu título. Se ele não
é um homem, então não pode ser um imperador. Mesmo quando, em meio às honras de
um triunfo, ele está sentado no seu honroso carro de guerra, ele se recorda de
ser um homem. Uma voz em sua mente permanece suspirando em seus ouvidos: “Olhe
para sua condição, lembre-se de que você é apenas um homem.” E isso apenas
acrescenta as suas exaltações o fato de que ele brilha com uma luz que
ultrapassa os requerimentos de sua condição e que ele necessita de uma
reminiscência, para que ele não acredite ser de natureza divina.
» CAPÍTULO XXXIV
Augusto, o fundador do Império, nunca recebeu o
título de Senhor; este é, pois, o nome da Deidade. Da minha parte, estou
disporto a dar ao imperador essa designação, mas na aceitação comum da palavra
e quando sou forçado a chamá-lo assim no caso dele estar sendo um representante
de Deus. Mas minha relação com ele é apenas de liberdade, pois tenho um só e
verdadeiro Senhor, Deus onipotente e eterno, o qual é senhor também do
imperador. Como pode ele, o qual é realmente pai de seu país, ser seu senhor? O
nome da piedade é mais gratificante que o nome do poder; então os chefes das
famílias são chamados pais tanto mais que senhores. Longe de nós o imperador
receber o nome de Deus. Nós apenas podemos professar nossa crença de que ele é
o que é indignamente, ou mais que isso, por uma bajulação fatal; isso é como
se, tendo um imperador, você chamasse a outro pelo nome de imperador, em qual
caso você ofenderia aquele que atualmente reina. Dê toda a reverência a Deus,
se você deseja que o imperador seja propiciado por Deus. Dê toda a adoração e
acredite nEle, pos nenhum outro é divino. Cessem também de atribuir o nome
sagrado àquele que necessita de Deus. Se essa adulação mentirosa não é
vergonhosa, chamando divino um homem, deixe que ele tenha pavor pelo menos do
mau presságio o qual ele suporta. É a invocação de um praga, para dar a César o
nome de deus antes de sua apoteose.
» CAPÍTULO XXXV
Esta é a razão, pois, do porquê serem os cristãos
considerados inimigos públicos: eles não são vaidosos, falsos, nem imprudentes
com relação à honra do imperador; como homens que acreditam na verdadeira
religião, eles preferem celebrar seus dias de festa com boa consciência, ao
invés de serem libertinos. É, verdadeiramente, uma notável homenagem lançar
fogos e camas ante o público, banqueteando de rua em rua, tornando a cidade uma
grande taverna, fazendo lama com vinho, realizando atos violentos, vergonhosos
e luxuriantes! Será honesto alegrar-se abertamente da desgraça pública? Fazer
coisas diferentes sendo outras vezes conveniente os dias festivos dos
príncipes? Aqueles que observam as regras das virtudes em reverência a César,
por causa dele se afastariam delas? Deve a piedade ser uma licença para ações
imorais, e deve a religião ser usada para fornecer a ocasião para todo tipo de
extravagâncias? Pobres de nós, dignos de condenação! Pois por que nós mantemos
os dias votivos e de alta alegria em honra de César com castidade, sobriedade e
virtude? Por que, nos dias de felicidade, nós nem cobrimos as vigas de nossas
portas com loureiros nem iniciamos o dia com lâmpadas? É algo correto, nas
ocasiões de festividade pública, vestir nossa casa elegantemente como um novo
bordel? Entretanto, na importância desta homenagem a uma majestade menor, em
referência a nós sermos acusados de um pequeno sacrilégio, pois nós não
celebramos com vocês os feriados de César de uma maneira proibida pela
modéstia, decência e pureza - de fato, eles têm sido estabelecidos como que
fornecendo oportunidades para dissoluções mais do que qualquer outro motivo;
nesta importância estou ansioso para ressaltar quão fiéis e verdadeiros são
vocês, para não acontecer que estes que não nos tem como romanos, mas como
inimigos dos chefes de Roma, sejam considerados piores que nós, cristãos! Apelo
aos próprios habitantes de Roma, à população das sete colinas: por acaso os
habitantes de Roma já dispensaram algum César? O Tibre e as feras selvagens
testemunham. Diga agora se a natureza cobriu nossos corações com uma substância
transparente através da qual a luz pode passar, os quais, todos cortados, não
podem deletar a cena de outro e outro César presidindo a distribuição de um
dom? E muitas vezes eles estão gritando: “Talvez Júpiter pegue anos de nós e
com eles alongue os de vocês” - palavras tão estranhas aos lábios de um cristão
quanto está fora de questão seu desejo de uma mudança de imperador. Mas isto é
o povinho, vocês dizem; mas, mesmo sendo a ralé, eles ainda são romanos, e nada
mais freqüente do que eles pedirem a morte dos cristãos. É claro que as outras
classes, como convém a suas altas posições, são muito religiosas. Nem um único
sinal de traição há no Senado, nas ordens eqüestres, nos campos, no palácio. De
que lugar, então, veio um Cássio, um Negro, um Albino? De que lugar, eles que
acossaram o César entre os dois loureiros? De onde, eles que praticaram luta
livre, na qual adquiriram a habilidade necessária para estrangulá-lo? Eles, que
entraram no palácio, cheios de armas, mais audaciosos que todos os seus Tigerii
e Parthenii. Se não estou enganado, eles eram romanos; isto é, eles não eram
cristãos. Ainda todos eles, na véspera de suas traições, ofereceram sacrifícios
pela vida do imperador, e juraram por ele, uma coisa em profissão e outra em
seus corações; e eles tinham o hábito de denominar os cristãos de inimigos do
Estado. Sim, e pessoas que agora são trazidas diariamente à luz como
confederados ou aprovadores desses crimes e traições, as junções ainda
restantes depois de uma colheita de traidores, com loureiros novos e verdes
eles enfeitaram suas portas; com nobres e brilhantes lâmpadas, eles revestiram
seus pórticos; com os mais requintados e chamativos sofás eles dividiram o
Fórum entre eles; não que eles devam celebrar festas públicas, mas eles devem
pegar uma amostra de suas seções votivas em participação das festividades de
outro, e inaugurar o modelo e imagem de suas esperanças, mudando em suas mentes
o nome do imperador. A mesma homenagem é prestada, também respeitosamente, por
aqueles que consultam astrólogos e magos, sobre a vida de César - artes que,
sendo feitas por anjos caídos e proibidas por Deus, os cristãos não podem
usá-las. Mas quem tem qualquer ocasião para perguntar sobre a vida do
imperador, se ele não tem algum desejo contra ela ou alguma esperança e
expectativas para depois dela? Pois consultas a astrólogos não têm o mesmo
motivo no caso de amigos como no caso dos soberanos. A ansiedade de uma parenta
é algo muito diferente da de um súdito.