NOTRE
CHARGE APOSTOLIQUE
Sobre os erros do Sillon
Sobre os erros do Sillon
Carta
Apostólica do Papa S. Pio X
promulgada em 25 de Agosto de 1910
promulgada em 25 de Agosto de 1910
CARTA
APOSTÓLICA
A
nossos amados filhos Pedro-Heitor Coullié, Cardeal Presbítero da Santa Igreja
Romana, Arcebispo de Lyon; Luís-Henrique Luçon, Cardeal Presbítero da Santa
Igreja Romana, Arcebispo de Reims; Paulino-Pedro Andrieu, Cardeal Presbítero da
Santa Igreja Romana, Arcebispo de Bordéus, e a todos os outros nossos
Veneráveis Irmãos Arcebispos e Bispos da França: Sobre o Sillon.
PIO X,
Papa
Veneráveis
Irmãos, Saudação e Benção Apostólica.
1.
Nosso encargo apostólico Nos impõe o dever de vigiar sobre a pureza da fé e a
integridade da disciplina católica, de preservar os fiéis dos perigos do erro e
do mal, sobretudo quando o erro e o mal lhes são apresentados numa linguagem
atraente, que, encobrindo o vago das idéias e o equívoco das expressões sob o
ardor do sentimento e a sonoridade das palavras, pode inflamar os corações por
causas sedutoras mas funestas. Tais foram, outrora, as doutrinas dos pretensos
filósofos do século XVIII, as da Revolução e as do Liberalismo, tantas vezes
condenadas; tais são ainda hoje as teorias do Sillon, que, sob aparências
brilhantes e generosas, muitas vezes carecem de clareza, de lógica e de
verdade, e, por este aspecto, não exprimem o gênio católico e francês.
Ao “Sillon” não faltavam relevantes qualidades
2.
Durante muito tempo hesitamos, Veneráveis Irmãos, em dizer pública e
solenemente Nosso pensamento sobre o Sillon. Foi necessário que vossas
preocupações se viessem somar às Nossas para que Nos decidíssemos a fazê-lo.
Porque amamos a valente juventude alistada sob a bandeira do Sillon, e a
julgamos digna, por muitos aspectos, de elogio e de admiração. Amamos seus chefes,
em que Nos é grato reconhecer almas elevadas, superiores às paixões vulgares e
animadas do mais nobre entusiasmo pelo bem. Vós os vistes, Veneráveis Irmãos,
penetrados de um sentimento muito vivo de fraternidade humana, ir ao encontro
daqueles que trabalham e sofrem para os levantar, animados no seu devotamento
pelo amor a Jesus Cristo e pela prática exemplar da religião.
3. Foi
nos dias seguintes à memorável Encíclica de Nosso predecessor, de feliz
memória, Leão XIII, sobre a condição dos operários. A Igreja, pela boca de seu
Chefe supremo, havia derramado sobre os humildes e os pequenos todas as
ternuras do seu coração materno, e parecia convocar, por seus anelos, campeões
sempre mais numerosos da restauração da ordem e da justiça em nossa sociedade perturbada.
Os fundadores do Sillon não vinham, no momento oportuno, colocar a seu serviço
esquadrões jovens e crentes para a realização de seus desejos e de suas
esperanças? E, de fato, o Sillon levantou, entre as classes operárias, o
estandarte de Jesus Cristo, o sinal da salvação para os indivíduos e as nações,
alimentando sua atividade social nas fontes da graça, impondo o respeito da
religião nos ambientes menos favoráveis, habituando os ignorantes e os ímpios a
ouvir falar de Deus, e, muitas vezes, em conferências contraditórias, em face
de um auditório hostil, levantando-se, espiaçados por uma questão ou por um
sarcasmo, para proclamar alta e briosamente a sua fé. Eram os bons tempos do
Sillon; era o seu lado bom, que explica os encorajamentos e as aprovações que
não lhe regatearam o episcopado e a Santa Sé, enquanto este fervor religioso
pode encobrir o verdadeiro caráter do movimento sillonista.
Mas era ainda maior a gravidade de seus defeitos
4.
Porque, é necessário dizê-lo, Veneráveis Irmãos, nossas esperanças, em grande
parte, foram ludibriadas. Houve um dia em que o Sillon começou a manifestar,
para olhares clarividentes, tendências inquietantes. O Sillon se desorientava.
Podia ser de outra forma? Seus fundadores, jovens, entusiastas e cheios de confiança
em si mesmos, não estavam suficientemente armados de ciência histórica, de sã
filosofia e de forte teologia para afrontar, sem perigo, os difíceis problemas
sociais, para os quais tinham sido arrastados por sua atividade e por seu
coração, e para se premunir, no terreno da doutrina e da obediência, contra as
infiltrações liberais e protestantes.
Que forçaram o Papa a condená-lo
5. Os
conselhos não lhes faltaram, e, após os conselhos, vieram as admoestações. Mas
tivemos a dor de ver que tanto uns como outras deslizavam sobre suas almas
fugitivas, e ficavam sem resultado. As coisas vieram assim a tal ponto que Nós
trairíamos Nosso dever, se, por mais tempo, guardássemos silêncio. Devemos a
verdade a nossos caros filhos do Sillon, que um ardor generoso arrebatou para
um caminho tão falso quanto perigoso. Devemo-la a um grande número de
seminaristas e de padres que o Sillon subtraiu, senão à autoridade, pelo menos
à direção e à influência de seus Bispos. Devemo-la, enfim, à Igreja, onde o
Sillon semeia a divisão, e cujos interesses compromete.
O “Sillon” procura furtar-se à Autoridade da Igreja
6. Em
primeiro lugar, convém censurar severamente a pretensão do Sillon de escapar à
direção da Autoridade Eclesiástica. Os chefes do Sillon, com efeito, alegam que
se movem num terreno que não é o da Igreja; que só têm em vista interesses de
ordem temporal e não de ordem espiritual; que o sillonista é simplesmente um
católico dedicado à causa das classes trabalhadoras, às obras democráticas, e
que haure nas práticas de sua fé a energia de seu devotamento; que nem mais nem
menos que os artífices, os trabalhadores, os economistas e os políticos
católicos, ele se acha submetido às regras de moral comuns a todos, sem estar
subordinado, nem mais nem menos do que aqueles, de uma forma especial à
autoridade eclesiástica.
7. A
resposta a estes subterfúgios não é senão demasiado fácil. A quem se fará crer,
com efeito, que os sillonistas católico, que os padres e os seminaristas
alistados em suas fileiras só têm em vista, em sua atividade social, o
interesse temporal das classes trabalhadoras? Sustentar tal coisa, pensamos,
seria fazer-lhes injúria. A verdade é que os chefes do Sillon se proclamam
idealistas irredutíveis, que pretendem reerguer as classes operárias,
reerguendo, antes de mais nada, a consciência humana; que têm uma doutrina
social e princípios filosóficos e religiosos para reconstruir a sociedade sobre
um novo plano; que têm uma concepção especial sobre a dignidade humana, a
liberdade, a justiça e a fraternidade, e que, para justificar seus sonhos
sociais, apelam para o Evangelho, interpretando à sua maneira, e, o que é ainda
mais grave, para um Cristo desfigurado e diminuído. Além disso, estas idéias
eles as ensinam em seus círculos de estudo, eles as inculcam a seus
companheiros, eles as fazem penetrar em suas obras. São, pois, verdadeiramente,
professores de moral social, cívica e religiosa, e, quaisquer que sejam as modificações
que possam introduzir na organização do movimento sillonista, temos o direito
de dizer que a finalidade do Sillon, seu caráter, sua ação pertencem ao domínio
moral, que é o domínio próprio da Igreja, e que, em conseqüência, os
sillonistas se iludem quando crêem mover-se num terreno em cujos confins
expiram os direitos do poder doutrinário e diretivo da Autoridade Eclesiástica.
8. Se
suas doutrinas fossem isentas de erro, já teria sido uma falta muito grave à
disciplina católica o subtrair-se obstinadamente à direção daqueles que
receberam do céu a missão de guiar os indivíduos e as sociedades no reto
caminho da verdade e do bem. Mas o mal é mais profundo, já o dissemos: o
Sillon, arrastado por um mal compreendido amor dos fracos, descambou para o erro.
As tendências igualitárias do “Sillon”
9. Com
efeito, o Sillon se propõe o reerguimento e a regeneração das classes
operárias. Ora, sobre esta matéria os princípios da doutrina católica são
fixos, e a história da civilização cristã aí está para atestar sua fecundidade
benfazeja. Nosso Predecessor, de feliz memória, recordou-os em páginas
magistrais, que os católicos ocupados em questões sociais devem estudar e ter
sempre sob os olhos. Ensinou, de modo especial, que a democracia cristã deve “manter
a diversidade das classes, que é seguramente o próprio da cidade bem constituída,
e querer para a sociedade humana a forma e o caráter de Deus, seu autor, lhe
imprimiu”. Censurou “uma certa democracia que vai até aquele grau de
perversidade de atribuir, na sociedade, a soberania ao povo e de pretender a
supressão e o nivelamento das classes”. Ao mesmo tempo, Leão XIII impunha aos
católicos um programa de ação, o único programa capaz de recolocar e de manter
a sociedade sobre suas bases cristãs seculares. Ora, que fizeram os chefes do
Sillon? Não somente adotaram um programa e um ensinamento diferentes dos de
Leão XIII (o que já seria singularmente audacioso da parte de leigos, que se
colocam, assim, em concorrência com o Soberano Pontífice, como diretores da
atividade social da Igreja); mas rejeitaram abertamente o programa traçado por
Leão XIII, e adotaram um outro, que lhe é diametralmente oposto; além disso,
rejeitam a doutrina relembrada por Leão XIII sobre os princípios essenciais da
sociedade, colocam a autoridade no povo ou quase a suprimem, e toma, como ideal
por realizar, o nivelamento das classes. Caminham, pois, ao revés da doutrina
católica, para um ideal condenado.
10.
Bem sabemos que se gabam de reerguer a dignidade humana e a condição demasiado
desprezada das classes trabalhadoras, de tornar justas e perfeitas as leis do
trabalho e as relações entre capital e os assalariados, enfim, de fazer reinar
sobre a terra uma justiça melhor, e mais caridade, e de, por movimentos sociais
profundos e fecundos, promover na humanidade um progresso inesperado. E,
certamente, não condenamos estes esforços, que seriam excelentes, sob todos os
aspectos, se os sillonistas não esquecessem que o progresso de um ser consiste
em fortificar suas faculdades naturais por novas energias e facilitar o jogo de
sua atividade no quadro e de acordo com as leis de sua constituição; e que,
pelo contrário, ferindo seus órgãos essenciais, quebrando o quadro de suas
atividades, impele-se o ser não para o progresso, mas para a morte. Entretanto,
é isto que eles querem fazer com a sociedade humana; seu sonho consiste em
trocar-lhe as bases naturais e tradicionais e prometer uma cidade futura
edificada sobre outros princípios, que ousam declarar mais fecundos, mais
benfazejos do que os princípios sobre os quais repousa a atual cidade cristã.
11.
Não, Veneráveis Irmãos – e é preciso lembrá-lo energicamente nestes tempos de
anarquia social e intelectual, - a cidade não será contruída de outra forma
senão aquela pela qual Deus a construiu; a sociedade não será edificada se a
Igreja não lhe lançar as bases e não dirigir os trabalhos; não, a civilização
não mais está para ser inventada nem a cidade nova para ser construída nas
nuvens. Ela existiu, ela existe; é a civilização cristã, é a cidade católica.
Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos
naturais e divinos contra os ataques sempre renascentes da utopia malsã, da
revolta e da impiedade: omnia instaurare in Christo. E para que não Nos acusem
de julgar muito sumariamente e com rigor não justificado as teorias sociais do
Sillon, queremos rememorar-lhe os pontos essenciais.
As doutrinas subversivas e revolucionárias do “Sillon”
12. O
Sillon tem a nobre preocupação da dignidade humana. Mas esta dignidade é
compreendida ao modo de certos filósofos, que a Igreja está longe de poder
aprovar. O primeiro elemento desta dignidade é a liberdade, entendida neste
sentido que, salvo em matéria de religião, cada homem é autônomo. Deste
princípio fundamental tira as seguintes conclusões: Hoje em dia, o povo está
sob tutela, debaixo de uma autoridade que é distinta dele, e da qual se deve
libertar: emancipação política. Está sob a dependência de patrões que, detendo
seus instrumentos de trabalho, o exploram, o oprimem e o rebaixam; deve sacudir
seu jugo: emancipação econômica. Enfim, é dominado por uma casta chamada
dirigente, à qual o desenvolvimento intelectual assegura uma preponderância
indevida na direção dos negócios; deve subtrair-se à sua dominação: emancipação
intelectual. O nivelamento das condições, deste tríplice ponto de vista,
estabelecerá entre os homens a igualdade, e esta igualdade é a verdadeira
justiça humana. Uma organização política e social fundada sobre esta dupla
base, liberdade e igualdade (às quais logo virá acrescentar-se a fraternidade),
eis o que eles chamam Democracia.
13. No
entanto, a liberdade e a igualdade não constituem senão o lado, por assim
dizer, negativo. O que faz, própria e positivamente, a Democracia é a
participação maior possível de cada um no governo da coisa pública. E isto
compreende um tríplice elemento, político, econômico e moral.
14. Em
primeiro lugar, em política, o Sillon não abole a autoridade; pelo contrário,
considera-a necessária; mas a quer partilhar, ou para melhor dizer, a quer
multiplicar de tal modo que cada cidadão se tornará uma espécie de rei. A
autoridade, é certo, emana de Deus, mas reside primordialmente no povo e daí
deriva por via de eleição ou, melhor, ainda, de seleção, sem por isto deixar o
povo e se tornar independente dele; ela será exterior, mas somente na
aparência; na realidade, ela será interior, porque será uma autoridade
consentida.
15.
Guardadas as proporções, acontecerá o mesmo na ordemeconômica. Subtraído a uma
classe particular, o patronato será multiplicado de tal modo que cada operário
se tornará uma espécie de patrão. A forma invocada para realizar este ideal
econômico não é, afirma-se, a do socialismo, é um sistema de cooperativa
suficientemente multiplicadas para provocar uma concorrência fecunda e para
salvaguardar a independência dos operários, que não ficariam adstritos a
nenhuma delas.
16.
Eis agora o elemento capital, o elemento moral. Como a autoridade, já se viu, é
muito reduzida, é necessária uma outra força para completá-la e opor uma reação
permanente ao egoísmo individual. Este novo princípio, esta força, é o amor do
interesse profissional e do interesse público, quer dizer, da finalidade mesma
da profissão e da sociedade. Imaginai uma sociedade onde, na alma de cada um,
com o amor inato do bem individual e do bem familiar, reinasse o amor do bem
profissional e do bem público, onde, na consciência de cada um, estes amores,
se subordinassem de tal modo, que o bem superior dominasse sempre o bem
inferior; uma sociedade não poderia quase dispensar a autoridade e não
ofereceria o ideal da dignidade humana, cada cidadão tendo uma alma de rei,
cada operário uma alma de patrão? Arrancado à estreiteza de seus interesses privados
e elevado até os interesses de sua profissão e, mais alto, até os da nação
inteira e, mais alto, até os da humanidade (porque o horizonte do Sillon não se
detém nas fronteiras da pátria, mas se estende a todos os homens até os confins
do mundo), o coração humano, alargado pelo amor do bem comum, abraçaria todos
os companheiros da mesma profissão, todos os compatriotas, todos os homens. E
eis aí a grandeza e a nobreza humana ideal, realizada pela célebre trilogia:
Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
17.
Ora, estes três elementos, político, econômico e moral, estão subordinados um a
outro, e é o elemento moral, como dissemos, que é o principal. Com efeito,
nenhuma democracia política é viável se não tem profundos pontos de contato com
a democracia econômica. Por sua vez, nem uma nem outra são possíveis se não se
radicam num estado de espírito em que a consciência se acha investida de
responsabilidades e de energias morais proporcionadas. Mas, supondo este estado
de espírito, assim feito de responsabilidade consciente e de forças morais, a
democracia econômica daí decorrerá naturalmente por tradução em atos, desta
consciência e destas energias; e, igualmente, e pela mesma via, do regime
corporativo sairá a democracia política e econômica, esta trazendo aquela, se
acharão fixadas na própria consciência do povo sobre bases inabaláveis.
18.
Tal é, em resumo, a teoria, poder-se-ia dizer o sonho, do Sillon, e é para isto
que tende seu ensinamento e aquilo que chama a educação democrática do povo,
quer dizer, levar ao máximo a consciência e a responsabilidade cívicas de cada
qual, donde decorrerá a democracia econômica e política, e o reino da justiça,
da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
19.
Esta rápida exposição, Veneráveis Irmãos, já vos mostra claramente quanto
tínhamos razão em dizer que o Sillon opõe doutrina a doutrina, que edifica sua
cidade sobre uma teoria contrária à verdade católica e que falseia as noções
essenciais e fundamentais que regulam as relações sociais em toda a sociedade
humana. Esta oposição aparecerá com maior clareza ainda nas seguintes
considerações.
Sobre a autoridade, a liberdade e a obediência
20. O
Sillon coloca a autoridade pública primordialmente no povo, do qual deriva em
seguida aos governantes, de tal modo, entretanto, que continua a residir nele.
Ora, Leão XIII condenou formalmente esta doutrina em sua encíclica Diuturnum Illud (DP 12) sobre o Principado
Político, onde diz: “Grande número de modernos seguindo as pegadas daqueles
que, no século passado, se deram o nome de filósofos, declaram que todo o poder
vem do povo; que em conseqüência aqueles que exercem o poder na sociedade não a
exercem como sua própria autoridade, mas como uma autoridade a eles delegada
pelo povo e sob a condição de poder ser revogada pela vontade do povo, de quem
eles a têm. Inteiramente contrário é o pensamento dos católicos, que fazem
derivar de Deus o direito de mandar, como de seu princípio natural e necessário”.
Sem dúvida, o Sillon faz descer de Deus esta autoridade, que coloca em primeiro
lugar no povo, mas de tal forma que “sobe de baixo para ir ao alto, enquanto na
organização da Igreja, o poder desce do alto para ir até em baixo” (Marc
Sangnier, discurso de Rouen, 1907). Mas, além de ser anormal que a delegação
suba, pois é próprio à sua natureza descer, Leão XIII refutou de antemão esta
tentativa de conciliação entre a doutrina católica e o erro do filosofismo.
Pois prossegue: “É necessário observá-lo daqui: aqueles que presidem ao governo
da coisa pública podem bem, em certos casos, ser eleitos pela vontade e o
julgamento da multidão, sem repugnância nem oposição com a doutrina católica.
Mas, se esta escolha designa o governante, não lhe confere a autoridade de
governar, não lhe delega o poder, apenas designa a pessoa que dele será
investido”.
21. De
resto, se o povo continua a ser o detentor do poder, que vem a ser da
autoridade? Uma sombra, um mito; não há mais lei propriamente dita, não há mais
obediência. O Sillon o reconheceu; desde que, com efeito, reclama, em nome da
dignidade humana, a tríplice emancipação política, econômica e intelectual, a
cidade futura, para a qual trabalha, não mais terá mestres nem servidores; os
cidadãos aí serão todos livres, todos camaradas, todos reis. Uma ordem, um
preceito, seria um atentado à liberdade; a subordinação a uma qualquer
superioridade seria uma diminuição do homem, a obediência, uma degradação. É
assim, Veneráveis Irmãos, que a doutrina tradicional da Igreja nos representa
as relações sociais, mesmo na cidade mais perfeita possível? Não é verdade que
toda sociedade de criaturas dependentes e desiguais por natureza tem
necessidade de uma autoridade que dirija sua atividade para o bem comum e
imponha sua lei? E se, na sociedade, se encontram seres perversos (e sempre os
haverá), a autoridade não deverá ser tanto mais forte quanto o egoísmo dos maus
for mais ameaçador? Além disso, pode-se dizer, com uma aparência de razão sequer,
que haja incompatibilidade entre a autoridade e a liberdade, sem que se cometa
um erro grosseiro sobre o conceito da liberdade? Pode-se ensinar que a
obediência é contrária à dignidade humana e o ideal seria substituí-la pela “autoridade
consentida”? Será que o apóstolo S. Paulo não tinha em vista a sociedade
humana, em todas as suas etapas possíveis, quando prescrevia aos fiéis a
submissão a toda autoridade? Será verdade que a obediência aos homens, enquanto
representantes legítimos de Deus, quer dizer afinal de contas a obediência a
Deus, rebaixa o homem e o avilta abaixo de si mesmo? Será que o estado
religioso, fundado sobre a obediência, é contrário ao ideal da natureza humana?
Será que os santos, que foram os mais obedientes dos homens, foram escravos e
degenerados? Enfim, poder-se-ia imaginar um estado em que Jesus Cristo, de novo
sobre a terra, não mais desse o exemplo de obediência e não mais dissesse: Dai
a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus?
Sobre a justiça e a igualdade
22. O Sillon,
que ensina semelhantes doutrinas e as põe em prática em sua vida interna,
semeia portanto entre a vossa juventude católica noções erradas e funestas
sobre a autoridade, a liberdade e a obediência. Outra coisa não acontece quanto
à justiça e à igualdade. Trabalha, como afirma, para realizar uma era de melhor
justiça. Assim, para ele, toda desigualdade de condição é uma injustiça ou,
pelo menos, uma justiça menor! Princípio soberanamente contrário à natureza das
coisas, gerador de inveja e de injustiça, subversivo de toda a ordem social.
Assim, só na democracia inaugurará o reino da perfeita justiça! Não é isto uma
injúria às outras formas de governo que são rebaixadas, por este modo, à
categoria de governos impotentes, apenas toleráveis! De resto o Sillon, ainda
sobre este ponto, vai de encontro ao ensinamento de Leão XIII. Poderia Ter lido
na Encíclica já citada sobre o Principado Político que, “salvaguardada a
justiça, aos povos não é interdito escolher o governo que melhor responda a seu
caráter ou às instituições e costumes que receberam dos antepassados”, e a
Encíclica faz alusão à tríplice forma de governo bem conhecida. Supõe,
portanto, que a justiça é comparável com cada uma delas. E a Encíclica sobre a
condição dos operários não afirma claramente a possibilidade de restaurar-se a
justiça nas organizações atuais da sociedade, pois que indica os meios para
isso? Ora, sem dúvida alguma, Leão XIII queria falar não de uma justiça
qualquer, mas da justiça perfeita. Ensinando, pois, que a justiça é compatível
com as três formas de governo em questão, ensinava que, sob este aspecto, a
Democracia não goza de um privilégio especial. Os “sillonistas”, que pretendem
o contrário, ou recusam ouvir a Igreja ou têm da justiça e da igualdade um
conceito que não é católico.
Sobre a fraternidade
23. O
mesmo acontece com a noção da fraternidade, cuja base colocam no amor dos
interesses comuns, ou, além de todas as filosofias e de todas as religiões, na
simples noção de humanidade, englobando assim no mesmo amor e numa igual
tolerância todos os homens com todas as suas misérias, tanto as intelectuais e
morais como as físicas e temporais. Ora, a doutrina católica nos ensina que o
primeiro dever da caridade não está na tolerância das convicções errôneas, por
sinceras que sejam , nem da indiferença teórica e prática pelo erro ou o vício,
em que vemos mergulhados nossos irmãos, mas no zelo pela sua restauração
intelectual e moral, não menos que por seu bem-estar material. Esta mesma
doutrina católica nos ensina também que a fonte do amor do próximo se acha no
amor de Deus, Pai comum e fim comum de toda a família humana, no amor de Jesus
Cristo, do qual somos membros a tal ponto que consolar um infeliz é fazer o bem
ao próprio Jesus Cristo. Qualquer outro amor é ilusão ou sentimento estéril e
passageiro. Certamente, a experiência humana aí está, nas sociedades pagãs iy leigas
de todos os tempos, para provar que, em certos momentos, a consideração dos
interesses comuns ou da semelhança de natureza pesa muito pouco diante das
paixões e concupiscências do coração. Não, Veneráveis Irmãos, não existe
verdadeira fraternidade fora da caridade cristã, que, pelo amor de Deus e de
seu Filho Jesus Cristo nosso Salvador, abrange todos os homens, para consolar
todos, e para os conduzir todos à mesma fé e à mesma felicidade do céu.
Separando a fraternidade da caridade cristã assim entendida, a democracia,
longe de ser um progresso, constituiria um desastroso recuo para a civilização.
Porque, se se chegar, e Nós o desejamos de toda a nossa alma, à maior soma
possível de bem-estar para a sociedade e para cada um de seus membros pela
fraternidade, ou, como se diz ainda, pela soliedaridade universal, é necessária
a união dos espíritos na verdade, a união das vontades na moral, a união dos
corações no amor de Deus e de seu filho Jesus Cristo. Ora, esta união só poderá
ser realizada pela caridade católica, que é a única, por conseqüência, que pode
conduzir os povos no caminho do progresso, para o ideal da civilização.
Sobre a dignidade humana
24.
Enfim, na base de todas as falsificações das noções sociais fundamentais, o
Sillon coloca uma falsa idéia da dignidade humana. Segundo ele, o homem só será
verdadeiramente homem, digno desse nome, no dia em que adquirir uma consciência
esclarecida, forte, independente, autônoma, podendo dispensar os mestres, só
obedecendo a si própria, e capaz de assumir e desempenhar, sem falhas, as mais
graves responsabilidades. Eis algumas destas grandes palavras com as quais se
exalta o sentimento do orgulho humano; tal como um sonho, que arrasta o homem,
sem luz, sem guia e sem auxílio, pelo caminho da ilusão, em que, esperando o
grande dia da plena consciência, será devorado pelo erro e pelas paixões. E
este grande dia, quando virá? A menos que se mude a natureza humana (o que não
está no poder do Sillon), virá ele alguma vez? Será que os santos, que levaram
ao apogeu a dignidade humana, tiveram esta dignidade? E os humildes da terra,
que não podem subir tão alto e se contentam com traçar modestamente seu sulco
(tracer modestement son sillon) na classe social que lhes designou a
Providência, cumprindo energicamente seus deveres na humildade, na obediência e
na paciência cristãs, não seriam eles dignos do nome de homens, aos quais o
Senhor há de tirar um dia de sua condição obscura para colocar no céu, entre os
príncipes de seu povo?
Suspendemos
aqui nossas reflexões sobre os erros do Sillon. Não pretendemos esgotar o
assunto, pois que ainda poderíamos chamar vossa atenção sobre outros pontos
igualmente falsos e perigosos, por exemplo, sobre a maneira de compreender o
poder coercitivo da Igreja. Importa, contudo, examinar agora a influência
destes erros sobre a conduta prática do Sillon e sobre a sua ação social.
A estrutura igualitária da organização do “Sillon”
25. As
doutrinas do Sillon não ficam apenas nos domínios da abstração filosófica. Elas
são ensinadas à juventude católica, e, bem mais do que isso, procurasse
vivê-las. O Sillon se considera como o núcleo da cidade futura; reflete-a,
pois, tão fielmente quanto possível. Com efeito, não existe hierarquia no
Sillon. A elite que o dirige separa-se da massa por seleção, quer dizer,
impondo-se por sua autoridade moral e por suas virtudes. Nele se entra
livremente, como livremente dele se sai. Os estudos aí se fazem sem mestre,
quando muito com um conselheiro. Os círculos de estudos são verdadeiras
cooperativas intelectuais, onde cada um é ao mesmo tempo aluno e mestre. A
camaradagem mais absoluta reina entre os membros, e põe em total contato suas
almas: daí a alma comum do Sillon. Definiram-na “uma amizade”. Mesmo o padre,
quando nele ingressa, abaixa a eminente dignidade de seu sacerdócio e, pela
mais estranha inversão de papéis, se faz aluno, se põe no nível de seus jovens
amigos e não é mais do que um camarada.
O espírito anárquico que incute
26.
Nestes hábitos democráticos, e nas doutrinas sobre a cidade ideal que os
inspiram, reconhecereis, Veneráveis Irmãos, a causa secreta das faltas
disciplinares que, tantas vezes, tiverdes de recriminar ao Sillon. Não é de
espantar que não tenhais encontrado nos chefes e nos seus companheiros assim
formados, fossem seminaristas ou padres, o respeito, a docilidade e a
obediência que são devidos às vossas pessoas e à vossa autoridade; que tenhais
experimentado da parte deles uma surda oposição, e que tenhais tido o pesar de
os ver subtrair-se totalmente, ou, quando a isto forçados pela obediência,
entregar-se com desgosto às obras não sillonistas. Vós sois o passado, eles são
os pioneiros da civilização futura. Vós representais a hierarquia, as
desigualdades sociais, a autoridade e a obediência: instituições envelhecidas,
ante as quais suas almas, embevecidas por um outro ideal, não mais se podem
dobrar. Temos sobre este estado de espírito o testemunho de fatos dolorosos,
capazes de arrancar lágrimas, e não podemos, apesar de nossa longanimidade,
reprimir um justo sentimento de indignação. Pois há quem inspire à vossa
juventude católica a desconfiança para com a Igreja sua mãe; ensina-se-lhe que,
decorridos 19 séculos, ela ainda não conseguiu no mundo constituir a sociedade
sobre suas verdadeiras bases; que ela não compreendeu as noções sociais da
autoridade, da liberdade, da igualdade, da fraternidade e da dignidade humana;
que os grandes bispos e os grandes monarcas, que criaram e tão gloriosamente
governaram a França, não souberam dar ao seu povo nem a verdadeira justiça, nem
a verdadeira felicidade, porque eles não tinham o ideal do Sillon!
O
sopro da Revolução passou por aí, e podemos concluir que, se as doutrinas sociais
do Sillon são erradas, seu espírito é perigoso e sua educação funesta.
O “Sillon” é de uma intolerância odiosa
27.
Mas então, que devemos pensar de sua ação na Igreja, se seu catolicismo é tão
melindroso que, por mais um pouco, quem não abraçasse a sua causa seria a seus
olhos um inimigo interior do catolicismo, e nada teria compreendido do
Evangelho e de Jesus Cristo? Julgamos conveniente insistir sobre esta questão,
porque foi precisamente seu ardor católico que valeu ao Sillon, até estes
últimos tempos, preciosos encorajamentos e ilustres sufrágios. Pois bem!
Perante as palavras e os fatos, somos obrigados a dizer que, em sua ação como
em sua doutrina, o Sillon não dá satisfação à Igreja.
28. Em
primeiro lugar, seu catolicismo só se acomoda com a forma democrática de
governo, que julga ser a mais favorável à Igreja, e como que se confundindo com
ela; portanto, entenda sua religião a um partido político, Não precisamos
demonstrar que o advento da democracia universal não tem importância para a
ação da Igreja no mundo; já temos lembrado que a Igreja sempre deixou às nações
o cuidado de se dar o governo que consideram mais vantajoso para seus
interesses. O que Nós queremos afirmar ainda uma vez após nosso predecessor, é
que há erro e perigo em enfeudar, por princípio, o catolicismo a uma forma de
governo; erro e perigo que são tanto maiores quando se sintetiza a religião com
um gênero de democracia cujas doutrinas são erradas. Ora, é o caso do Sillon, o
qual, de fato, e em favor de uma forma política especial, comprometendo a
Igreja, divide os católicos, arranca a juventude e mesmo padres e seminaristas
à ação simplesmente católica, e esbanja, em pura perda, as forças vivas de uma
parte da nação.
Exceto quando se trata dos princípios da Igreja.
29. E
reparai, Veneráveis Irmãos, numa estranha contradição. É precisamente porque a
religião deve dominar todos os partidos, é invocando este princípio que o
Sillon se abstém de defender a Igreja atacada. Certamente não foi a Igreja que
desceu à arena política; arrastaram-na para aí, e para a mutilar, e para a
despojar. O dever de todo o católico não consiste, então, em usar das armas
políticas, que tem à mão, para defendê-la e também para forçar a política a
ficar em seu domínio e a não se ocupar da Igreja, a não ser para lhe dar o que
é devido? Pois bem! Em face da Igreja assim violentada, muitas vezes se tem a
dor de ver os sillonistas cruzar os braços, a não ser que eles achem vantajoso
defendê-la; vemo-los ditar ou sustentar um programa que em nenhum lugar nem no
menor grau revela o espírito católico. O que não impede que estes mesmos
homens, em plena luta política, sob o golpe de uma provocação, façam pública
ostentação de sua fé. Isto que quer dizer senão que há dois homens nos
sillonistas: o indivíduo que é católico; o sillonista, homem de ação, que é
neutro.
30. Houve
um tempo em que o Sillon, como tal, era formalmente católico. Em matéria de
força moral, só conhecia uma, a força católica, e ia proclamando que a
democracia havia de ser católica, ou não seria democracia. Em dado momento,
entretanto, mudou de parecer. Deixou a cada um em sua religião ou sua
filosofia. Ele próprio deixou de se qualificar de “católico”, e a fórmula “A
democracia há de ser católica” substitui-a por esta “A democracia não há de ser
anticatólica”, tanto quanto, aliás, antijudaica ou antibudista. Foi a época do “maior
Sillon”. Todos os operários de todas as religiões e de todas as seitas foram
convocados para a construção da cidade futura. Outra coisa não se lhes pediu a
não ser que abraçassem o mesmo ideal social, que respeitassem todas as crenças
e que trouxessem um saldo das forças morais. Certamente, proclamava-se, “os
chefes do Sillon põem sua fé religiosa acima de tudo. Mas podem recusar aos
outros o direito de hauri-la na fé católica. Pedem, pois, a todos aqueles que
querem transformar a sociedade presente no sentido da democracia, que não se
repilam mutuamente por causa de convicções filosóficas ou religiosas que os
possam separar mas que marchem de mãos dadas, não renunciando a suas
convicções, mas experimentando fazer, sobre o terreno das realidades práticas,
a prova da excelência de suas convicções pessoais. Talvez que neste terreno de
emulação entre almas ligadas a diferentes convicções religiosas ou filosóficas
a união se possa realizar” (Marc Sangnier, Discurso de Rouen, 1907). E ao mesmo
tempo se declarou (de que modo isto se poderia realizar?) que o pequeno Sillon
católico seria a alma do grande Sillon cosmopolita.
31.
Recentemente, desapareceu o nome do grande “maior Sillon”, e houve a
intervenção de uma nova organização que em nada modificou, bem pelo contrário,
o espírito e o fundo das coisas “para por ordem no trabalho, e organizar as
diversas formas de atividade. O Sillon continua sempre a ser uma alma, um
espírito, que se misturará aos grupos e inspirará sua atividade”. E a todos os
novos agrupamentos, tornados autônomos na aparência: católicos, protestantes,
livres-pensadores, se pede que se ponham a trabalhar. “Os camaradas católicos
se esforçarão entre si próprios, numa organização especial, por se instruir e
se educar. Os democratas protestantes e livres-pensadores farão o mesmo de seu
lado. Todos, católicos, protestantes e livres-pensadores terão em mira armar a
juventude não para uma luta fratricida, mas para uma generosa emulação no
terreno das virtudes sociais e cívicas” (Marc Sangnier, Paris, Maio de 1910).
32.
Estas declarações e esta nova organização da ação sillonista provocam bem
graves reflexões. Eis uma associação interconfessional, fundada por católicos,
para trabalhar na reforma da civilização moral sem a verdadeira religião: é uma
verdade demonstrada, é um fato histórico. E os novos sillonistas não poderão
pretextar que só trabalharão “no terreno das realidades práticas” onde a
diversidade das crenças não importa. Seu chefe tão bem percebe esta influência
das convicções do espírito sobre o resultado da ação, que os convida, qualquer
que seja a religião a que pertençam, a “fazer no terreno das realidades
práticas a prova da excelência de suas convicções pessoais”. E com razão,
porque as realizações práticas revestem o caráter das convicções religiosas,
como os membros de um corpo, até as últimas extremidades, recebem sua forma do
princípio vital que o anima.
33.
Isto posto, que se deve pensar da promiscuidade em que se acharão agrupados os
jovens católicos com heterodoxos e incrédulos de todas as espécies, numa obra
desta natureza? Esta não será mil vezes mais perigosa para eles do que uma
associação neutra? Que se deve pensar deste apelo a todos os heterodoxos e a
todos os incrédulos para virem provar a excelência de suas convicções no
terreno social, numa espécie de concurso apologético, como se este concurso já
não durasse há 19 séculos, em condições menos perigosas para a fé dos fiéis e
sempre favorável à Igreja Católica? Que se deve pensar deste respeito a todos
os erros e deste estranho convite, feito por um católico a todos os
dissidentes, fortificarem suas convicções pelo estudo e delas fazer as fontes
sempre mais abundantes de novas forças? Que se deve pensar de uma associação em
que todas as religiões, e mesmo o livre-pensamento, podem manifestar-se
altamente à vontade? Porque os sillonistas que, nas conferências públicas e em
outras ocasiões proclamam altivamente sua fé individual, não pretendem
certamente fechar a boca aos outros e impedir que o protestante afirme seu
protestantismo e o cético, seu ceticismo. Que pensar, enfim, de um católico
que, ao entrar em seu círculo de estudos, deixa na porta seu catolicismo, para
não assustar seus camaradas que, “sonhando com uma ação social desinteressada,
têm repugnância de a fazer servir ao triunfo de interesses, de facções, ou
mesmo de convicções, quaisquer que sejam”? Tal é a profissão de fé na nova
Comissão Democrática de Ação Social, que herdou a maior tarefa da antiga
organização, e que, assim afirma, “desfazendo o equívoco em torno do maior
Sillon, tanto nos meios reacionários como nos meios anticlericais”, está aberta
a todos os homens “respeitadores das forças morais e religiosas e convencidos
de que nenhuma emancipação social verdadeira será possível sem o fermento de um
generoso idealismo”.
34.
Ah, sim! O equívoco está desfeito; a ação social do Sillon não é mais católica;
o sillonista, como tal não trabalha para uma facção, e “a Igreja, ele o diz,
não deveriam por nenhum título, ser a beneficiária das simpatias que sua ação
possa suscitar”. Insinuação estranha, em verdade! Teme-se que a Igreja se
aproveite, com objetivo egoísta e interesseiro, da ação social do Sillon, como
se tudo o que aproveita à Igreja não aproveitasse à humanidade! Estranha inversão
de idéias: a Igreja é que seria beneficiária da ação social, como se os maiores
economistas já não houvessem reconhecido e demonstrado que a ação social é que,
para ser real e fecunda, deve beneficiar-se da Igreja. Porém, mais estranhas
ainda, ao mesmo tempo inquietantes e acabrunhadoras, são a audácia e a
ligeireza de espírito de homens que se dizem católicos, e que sonham refundir a
sociedade em tais condições, e estabelecer sobre a terra, por cima da Igreja
Católica, “o reino da justiça e do amor”, com operários vindos de toda parte,
de todas as religiões ou sem religião, com ou sem crenças, contando que se
esqueçam do que os divide: suas convicções religiosas e filosóficas, e ponham
em comum aquilo que os une: um generoso idealismo e forças morais adquiridas “onde
possam”, Quando se pensa em tudo que foi preciso de forças, de ciência, de
virtudes sobrenaturais para estabelecer a cidade cristã, e nos sofrimentos de
milhões de mártires, e nas luzes dos Padres e Doutores da Igreja, e no
devotamento de todos os heróis da caridade, e numa poderosa Hierarquia nascida
no céu, e nas torrentes da graça divina, e tudo isto edificado, travado,
compenetrado pela Vida e pelo Espírito de Jesus Cristo, a Sabedoria de Deus, o
Verbo feito homem; quando se pensa, dizíamos, em tudo isto edificado, fica-se
atemorizado ao ver novos apóstolos se encarniçarem por fazer melhor, através da
atuação dum vago idealismo e de virtudes cívicas. Que é que sairá desta
colaboração? Uma construção puramente verbal e quimérica, em que se verão
coruscar promiscuamente, e numa confusão sedutora, as palavras liberdade,
justiça, fraternidade e amor, igualdade e exaltação humana, e tudo baseado numa
dignidade humana mal compreendida. Será uma agitação tumultuosa, estéril para o
fim proposto, e que aproveitará aos agitadores de massas, menos utopistas. Sim,
na realidade, pode-se dizer que o Sillon escolta o socialismo, o olhar fixo
numa quimera.
35.
Tememos que ainda haja pior. O resultado desta promiscuidade em trabalho, o
beneficiário desta ação social cosmopolita só poderá ser uma democracia, que
não será nem católica, nem protestante, nem judaica; uma religião (porque o
sillonismo, os chefes o afirmaram, é uma religião) mais universal do que a
Igreja Católica, reunindo todos os homens tornados enfim irmãos e camaradas “no
reino de Deus”. – “Não se trabalha pela Igreja, trabalha-se pela humanidade”.
E por isto o “Sillon” deixou de ser católico
36. E
agora, penetrado da mais viva tristeza, perguntamo-Nos, Veneráveis Irmãos, onde
foi parar o catolicismo do Sillon. Ah! Ele, que dava outrora tão belas
esperanças esta torrente límpida e impetuosa foi captada em sua marcha pelos
inimigos modernos da Igreja, e agora já não é mais do que um miserável afluente
do grande movimento de apostasia organizada, em todos os países, para o
estabelecimento de uma Igreja universal que não terá nem dogmas, nem
hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as paixões, e que sob o
pretexto de liberdade e de dignidade humana, restauraria no mundo, se pudesse
triunfar, o reino legal da fraude e da violência, e a opressão dos fracos,
daqueles que sofrem e que trabalham.
O “Sillon” e as tramas dos inimigos da Igreja
37.
Conhecemos demasiado bem os sombrios laboratórios, em que se elaboram estas
doutrinas deletérias, que não deveriam seduzir espíritos clarividentes. Os
chefes do Sillon não souberam evitá-las: a exaltação de seus sentimentos, a
cega bondade de seu coração, seu misticismo filosófico misturado com um tanto
de iluminismo os impeliram para um novo Evangelho do Salvador, a tal ponto que
ousam tratar Nosso Senhor Jesus Cristo com uma familiaridade soberanamente
desrespeitosa, e que, sendo o seu ideal aparentado com o da Revolução, não
temem fazer entre o Evangelho e a Revolução aproximações blasfematórias, que
não têm a escusa de haverem escapado a alguma improvisação tumultuosa.
O “Sillon” dá uma idéia desfigurada do divino
Redentor.
38.
Queremos chamar vossa atenção, Veneráveis Irmãos, sobre esta deformação do
Evangelho e do caráter sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem,
praticada no Sillon e algures. Desde que se aborda a questão social, está na
moda, em certos meios, afastar primeiro a divindade de Jesus Cristo, e depois
só falar de sua soberana mansidão, de sua compaixão por todas as misérias
humanas, de suas instantes exortações ao amor do próximo e fraternidade.
Certamente, Jesus nos amou com um amor imenso, infinito, e veio à terra sofrer
e morrer, a fim de que, reunidos em redor dele na justiça e no amor, animados
dos mesmos sentimentos de mútua caridade, todos os homens vivam na paz e na
felicidade. Mas para a realização desta felicidade temporal e eterna, Ele impôs,
com autoridade soberana, a condição de se fazer parte de seu rebanho, de se
aceitar sua doutrina, de se praticar a virtude e de se deixar ensinar e guiar
por Pedro e seus sucessores. Ademais se Jesus foi bom para os transviados e os
pecadores, não respeitou suas convicções errôneas por sinceras que parecessem;
amou-os a todos para os instruir, converter e salvar. Se chamou junto de si,
para os consolar, os aflitos e os sofredores, não foi para lhes pregar o anseio
de uma igualdade quimérica. Se levantou os humildes, não foi para lhes inspirar
o sentimento de uma dignidade independente e rebelde à obediência. Se seu
coração transbordava de mansidão pelas almas de boa vontade, soube igualmente
armar-se de uma santa indignação contra os miseráveis que escandalizam os
pequenos, contra as autoridades que acabrunham o povo sob a carga de pesados
fardos, sem aliviá-la sequer com o dedo. Foi tão forte quão doce; repreendeu,
ameaçou, castigou, sabendo e nos ensinando que, muitas vezes, o temor é o
começo da sabedoria, e que, às vezes, convém cortar um membro para salvar o
corpo. Enfim, não anunciou para a sociedade futura o reinado de uma felicidade
ideal, de onde o sofrimento fosse banido; mas, por lições e exemplos, traçou o
caminho da felicidade possível na terra e da felicidade perfeita no céu: a
estrada real da cruz. Estes são ensinamentos eminentemente sociais, e nos
mostram em Nosso Senhor Jesus Cristo outra coisa que não um humanitarismo sem
consciência e sem autoridade.
Exortação ao Episcopado
39. No
que se refere a vós, Veneráveis Irmãos, continuai ativamente a obra do Salvador
dos homens pela imitação de sua doçura e de sua força. Inclinai-vos para todas
as misérias; que nenhuma dor escape à vossa solicitude pastoral; que nenhum
gemido vos encontre indiferentes. Mas, também, pregai ousadamente os deveres
aos grandes e aos pequenos; a vós compete formar a consciência do povo e dos
poderes públicos. A questão social está bem perto de ser resolvida quando uns e
outros, menos exigentes a respeito de seus direitos recíprocos, cumprirem mais
exatamente seus deveres. Além disso, como no conflito dos interesses, e
principalmente na luta com as forças pouco honestas, a virtude de um homem, e
mesmo sua santidade, não é sempre suficiente para lhe assegurar o pão
cotidiano, e como as engrenagens sociais deveriam estar organizadas de tal
forma que, por seu jogo natural, paralisassem os esforços dos maus e tornassem
acessível a toda boa vontade sua parte legítima de felicidade temporal,
desejamos vivamente que tomeis uma parte ativa na organização da sociedade,
neste sentido. E, para isto, enquanto vossos padres se entregarem com ardor ao
trabalho da santificação das almas, da defesa da Igreja, e às obras de caridade
propriamente ditas, escolhereis alguns dentre eles, ativos e de espírito
ponderado, munidos dos graus de doutor em filosofia e teologia, e dominando
perfeitamente a história da civilização antiga e moderna, e os aplicareis aos
estudos menos elevados e mais práticos da ciência social, para, no tempo oportuno,
colocá-los à testa de vossas obras de ação católica. Contudo, que estes padres
não se deixem transviar no dédalo das opiniões contemporâneas, pela miragem de
uma falsa democracia; que não emprestem à retórica dos piores inimigos da
Igreja e do povo uma linguagem enfática, cheia de promessas tão sonoras quanto
irrealizáveis. Estejam eles persuadidos de que a questão social e a ciência
social não nasceram ontem; que, de todos os tempos, a Igreja e o Estado, em
feliz acordo, suscitaram para isto organizações fecundas; que a Igreja, que
jamais traiu a felicidade do povo em alianças comprometedoras, não precisa
livrar-se do passado, bastando-lhe retomar, com o auxílio de verdadeiros
operários da restauração social, os organismos quebrados pela Revolução,
adaptando-os, com o mesmo espírito cristão que os inspirou, ao novo ambiente
criado pela evolução material da sociedade contemporânea; porque os verdadeiros
amigos do povo não são revolucionários, nem inovadores, mas tradicionalistas.
Os membros do “Sillon” devem submeter-se
40. A
esta obra, eminentemente digna de vosso zelo pastoral, desejamos que, longe de
a embaraçar, a juventude do Sillon, purificada de seus erros, traga, na ordem e
na submissão convenientes, um concurso leal e eficaz.
41.
Voltando-nos, pois, para os chefes do Sillon, com a confiança de um pai que
fala a seus filhos, pedimo-lhes para o seu bem, para o bem da Igreja e da
França, vos cedam o lugar. Medimos, certamente, a extensão do sacrifício que
lhes solicitamos, mas os sabemos assaz generosos para o realizar, e,
antecipadamente, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, de quem somos o indigno
representante, os abençoamos . Quanto aos membros do Sillon, queremos que se
agrupem por dioceses para trabalhar, sob a direção de seus bispos respectivos,
pela regeneração cristã e católica do povo, ao mesmo tempo pela melhoria de sua
sorte. Estes grupos diocesanos serão, por ora, independentes uns dos outros; e,
a fim de tornar bem claro que romperam com os erros do passado, tomarão o nome
de Sillons Católicos, e cada um de seus membros acrescentará a seu título de
sillonista o mesmo qualificativo de católico. Não será preciso dizer que todo
sillonista católico ficará livre, aliás, de guardar suas preferências
políticas, depuradas de tudo o que não esteja inteiramente conforme, nesta
matéria, com a doutrina da Igreja. E assim, Veneráveis Irmãos, se houver grupos
que se recusem a submeter-se a estas condições, devereis considerá-los por isso
mesmo como se recusassem a submeter-se à vossa direção; e, então, dever-se-á
examinar se eles se confinam na política ou na economia pura, ou se perseveram
nos antigos erros. No primeiro caso, está claro que já não vos devereis ocupar
mais deles do que do comum dos fiéis; no segundo, devereis agir em conseqüência,
com prudência mas com firmeza. Os padres deverão manter-se totalmente alheios
aos grupos dissidentes e se contentarão com prestar o socorro do santo
ministério individualmente a seus membros, aplicando-lhes, no tribunal da
Penitência, as regras comuns de moral relativamente à doutrina e à conduta.
Quanto aos grupos católicos, os padres e os seminaristas, sempre favorecendo-os
e os secundando, abster-se-ão de se inscreverem como membros, porque é
conveniente que a milícia sacerdotal fique acima das associações leigas, mesmo
as mais úteis e animadas do melhor espírito.
42.
Tais são as medidas práticas pelas quais julgamos necessário sancionar esta
carta sobre o Sillon e os sillonistas.Que o Senhor haja por bem, nós o rogamos
no fundo da alma, fazer com que estes homens e estes jovens compreendam as
graves razões que a ditaram, e lhes dê a docilidade de coração, com a coragem
de provar, em face da Igreja, a sinceridade de seu fervor católico; e a vós,
Veneráveis Irmãos, que vos inspire para com eles, pois que eles são doravante
vossos, os sentimentos de uma afeição toda paternal.
É com
esta esperança, e para obter estes resultados tão desejáveis, que vos
concedemos, de todo o coração, assim como a vosso clero e a vosso povo, a
Benção Apostólica.
Dado
em Roma, junto a S. Pedro, em 25 de Agosto de 1910, oitavo ano de Nosso
Pontificado.