A QUAS PRIMAS, encíclica de Pio XI sobre Cristo Rei, foi
interpretada liberalmente como apenas um documento estabelecedor de uma festa
religiosa. Não o é: é antes de tudo a Carta Magna da Cristandade. É a última
palavra do magistério sobre a ordenação essencial (não acidental) de tudo,
incluídos os estados, à Igreja e pois a Cristo, sua cabeça invisível: o mesmo,
aliás, que dizem Bonifácio VIII na bula Unam Sanctam e S. Tomás de
Aquino em De Regno. Em outras palavras, ou os estados são cristãos
e membros da Igreja, ou as sociedades se tornam pasto de demônios (Carlos Nougué).
QUAS PRIMAS
Sobre Cristo Rei*
CARTA ENCÍCLICA
Aos
Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos,
Bispos e Outros Ordinários em paz e comunhão com a Sé
Apostólica: sobre Cristo Rei.
PIO
PAPA XI
Veneráveis
Irmãos, saúde e bênção apostólica.
INTRODUÇÃO
1.
Na primeira Encíclica, dirigida, em princípios do nosso Pontificado, aos Bispos
do mundo inteiro, indagamos a causa íntima das calamidades que, ante os nossos
olhos, avassalam o gênero humano. Ora, lembra-nos haver abertamente declarado
duas coisas: uma — que esta aluvião de males sobre o universo provém de terem a
maior parte dos homens removido, assim da vida particular como da vida pública,
Jesus Cristo e sua lei sacrossanta; a outra — que baldado era esperar paz
duradoura entre os povos, enquanto os indivíduos e as nações recusassem
reconhecer e proclamar a Soberania de Nosso Salvador. E por isso, depois de
afirmarmos que se deve procurar “a paz de Cristo no reino de Cristo”,
manifestamos que era intenção nossa trabalhar para este fim, na medida de
nossas forças. “No reino de Cristo”, — dizíamos; porque, para restabelecer e
confirmar a paz, outro meio mais eficiente não deparávamos do que reconhecer a
Soberania de Nosso Senhor. Com o correr do tempo, claramente pressentimos o
raiar de dias melhores, quando vimos o zelo dos povos em acudir, — uns pela
primeira vez, outros com renovado ardor, — a Cristo e à sua Igreja, única
dispensadora da salvação: sinal manifesto de que
muitos homens, até o presente como que desterrados do reino do Redentor, por
desprezarem sua autoridade, preparam, ainda bem, e levam a efeito sua volta à
obediência.
PREPARAÇÃO
PROVIDENCIAL DA NOVA FESTA. O ANO SANTO
2.
Quanto, ao depois, sobreveio, quanto aconteceu no decorrer
do “Ano Santo”, digno, na verdade, de eterna memória, porventura não concorreu
eficazmente para a honra e glória do Fundador da Igreja, de sua soberania, de
sua suprema realeza?
Exposição
Missionária
Realizou-se,
primeiro, a “Exposição Missionária”, que, nos corações e nos espíritos dos
homens, produziu tão profunda impressão. Ali vimos os incansáveis trabalhos
empreendidos pela Igreja, para dilatar cada vez mais o reino de seu Esposo, em
todos os continentes, em todas as ilhas, até nas mais longínquas, perdidas no
oceano. Vimos quantos países conquistaram ao catolicismo à custa de seus
suores, de seu sangue, nossos heroicos e destemidos missionários. Vimos as
imensas regiões que ainda ficam por sujeitar ao domínio benfazejo de nosso Rei.
Peregrinações
jubilares
Realizaram-se,
em seguida, romarias, vindas a Roma, durante o Ano Santo, de todas as partes do
mundo, e guiadas por seus Bispos ou sacerdotes. Que motivos impeliam esses
peregrinos, senão o desejo de purificarem suas almas e de proclamarem, junto ao
Sepulcro dos Apóstolos e em Nossa presença, que estão e querem permanecer sob a
autoridade de Cristo?
Canonizações
Por
fim, conferimos a seis Confessores ou Virgens as honras dos Santos, depois de
cabalmente provadas suas admiráveis virtudes. Não brilhou, nesse dia, com
novo fulgor, o reino de Jesus? Que gozo, que consolação não foi para Nossa
alma, depois de proferirmos os decretos definitivos, ouvir, no majestoso
recinto de S. Pedro, a imensa multidão os fiéis aclamar com uma só voz, entre
cantos de ação de graças, a realeza gloriosa de Cristo — “Tu Rex gloriae,
Christe!” Num tempo em que indivíduos e estados, joguetes das sedições nascidas
do ódio e discórdias civis, se precipitam para a ruína e a morte, a Igreja de
Deus, prosseguindo a dar ao gênero humano o alimento da vida espiritual, gera e
continua a educar para Cristo gerações sucessivas de Santos e Santas, e Cristo,
por sua vez, não cessa de chamar à eterna felicidade do seu reino celeste
quantos se Lhe demonstraram súditos fiéis e submissos de seu reino terrestre.
Centenário do Concílio
de Niceia
Com
o grande jubileu coincidiu o 16.° centenário do Concílio de Niceia. Mandamos
festejar este aniversário secular, e Nós mesmo o comemoramos na Basílica
Vaticana, com tanto melhor grado, que este Concílio definiu e proclamou dogma
de fé católica a “consubstancialidade” do Unigênito de Deus com seu Pai, e,
inserindo em sua fórmula de fé, ou “Credo”, as palavras: “cujo reino não terá
fim — cujus regni non erit finis” — com isto mesmo afirmou a dignidade real de
Cristo.
Súplica em favor de Cristo-Rei
3.
Portanto, já que este ano jubilar, em mais de uma ocasião, contribuiu para pôr
em realce a realeza de Cristo, julgamos cumprir um dos atos mais próprios do
Nosso ofício apostólico, acedendo às súplicas, assim individuais como
coletivas, de numerosos Cardeais, Bispos ou fiéis, e encerrar este ano com
introduzir na liturgia da Igreja uma festa especial em honra de Nosso Senhor
Jesus Cristo Rei. Este argumento temo-lo tanto a peito, Veneráveis Irmãos, que
desejamos entreter-nos dele convosco alguns instantes. Empenho vosso será,
depois, tornar, acessível à inteligência e aos
sentimentos populares quanto dissermos sobre o culto de “Cristo-Rei”, de modo
que a nova festa anual produza agora e no
porvir múltiplos frutos.
FUNDAMENTO
DOUTRINAL DA NOVA FESTA
Cristo-Rei
no sentido metafórico
4.
Muito há que a linguagem corrente dá a Cristo o nome de “Rei em sentido
metafórico e transposto”. “Rei” é Cristo, com efeito, atenta a eminente e
suprema perfeição com que sobrepuja a todas as criaturas. Assim, dizemos que “reina
sobre as inteligências humanas”, por causa da penetração do seu espírito e da
extensão de sua ciência, mas sobretudo porque é a própria Verdade em pessoa, de
quem, portanto, é força que recebam rendidamente os homens toda verdade. Dizemos
que “reina sobre as vontades humanas”, porque n'Ele se alia a indefectível
santidade do divino querer com a mais reta, a mais submissa das vontades
humanas; e também porque suas inspirações entusiasmam nossa vontade livre pelas
causas mais nobres. Dizemos, enfim, que é “Rei dos corações”, por causa daquela
inefável “caridade que excede a toda humana compreensão” (Ef 3, 19); e porque
sua doçura e sua bondade atraem os corações: pois nunca houve, no gênero
humano, e nunca haverá quem tanto amor tenha ateado como Cristo Jesus.
Cristo Deus-Homem Rei
da Humanidade em sentido próprio
5.
Aprofundemos sempre mais o nosso argumento. É manifesto que o nome e o poder de
“Rei”, no sentido próprio da palavra, competem a Cristo em sua Humanidade,
porque só de Cristo enquanto homem é que se pode dizer: do Pai recebeu “poder,
honra e realeza” (Dan 7, 13-14). Enquanto Verbo, consubstanciai ao Pai, não
pode deixar de Lhe ser em tudo igual e, portanto, de ter, como Ele, a suprema e
absoluta soberania e domínio de todas as criaturas.
Testemunho ao Antigo
Testamento
6.
Que Cristo seja Rei, não o lemos nós na Escritura? Ele é o “Dominador oriundo
de Jacob” (Num 24, 19), Ele o “Rei, dado pelo Pai a Sião, sua Santa Montanha,
para receber em herança as nações, e dilatar seu domínio até os confins da
Terra” (Sl 2, 6. 8), Ele o verdadeiro “Rei vindouro” de Israel, que o cântico
nupcial nos representa sob os traços de um soberano opulento e poderoso, a quem
se dirigem estas palavras: “O teu trono, ó Deus, subsistirá por todos os séculos:
a vara de retidão é a vara de teu reino” (Sl 44, 7). Omitindo muitos passos
análogos, deparamos além, como, para delinear com maior nitidez a fisionomia de
Cristo, vem predito que seu reino desconhecerá fronteiras e desfrutará os
tesouros da justiça e da paz. “Nos dias d'Ele, aparecerá justiça e abundância
de paz... E dominará de mar a mar, e desde o rio até os confins da Terra” (SL
71, 7-8). A esses testemunhos, juntam-se mais numerosos ainda os oráculos dos
Profetas, e notadamente a tão conhecida profecia de Isaías: “Já um Pequenino se
acha nascido para nós, e um filho nos foi dado, e foi posto o principado sobre
o seu ombro; e o nome com que se apelide será Admirável, Conselheiro, Deus,
Forte, Pai do futuro século, Príncipe da Paz. O seu império se estenderá cada
vez mais, e a paz não terá fim; assentar-se-á sobre o trono de David e sobre o
seu reino, para o firmar e fortalecer em juízo e justiça, desde então e para
sempre” (Is 9, 6-7).
7.
Não é outro o modo como se expressam os demais Profetas. Assim fala Jeremias,
quando prenuncia à descendência de David “um germe de justiça”, esse filho de
David, que reinará como Rei, “será sábio e obrará segundo a equidade e justiça
na Terra” (Jer 23, 5). Assim Daniel, quando prediz a constituição por Deus de
um reino “que não será jamais dissipado... e que durará eternamente” (Dan 2,
44). E pouco depois acrescenta: “Eu considerava estas coisas numa visão de
noite, e eis que vi um, como o Filho do Homem, que vinha com as nuvens do Céu,
e que chegou até o Antigo dos dias; e eles o
apresentaram diante d'Ele. E Ele Lhe deu o poder, e a honra,
e o reino; todos os povos, e tribos e línguas o servirão: o seu poder é um
poder eterno, que Lhe não será tirado, e o seu
reino tal, que não será jamais corrompido” (Dan 7, 13-14). Assim Zacarias,
quando profetiza a entrada em Jerusalém, entre as aclamações do povo, do “Justo
e Salvador”, do Rei cheio de mansidão “montado sobre uma jumenta, e sobre o
potrinho da jumenta” (Zac 9, 9). E não apontaram os Evangelistas o cumprimento
desta profecia?
Testemunho do
Novo Testamento
8.
Esta doutrina de “Cristo Rei”, que acabamos de esboçar segundo os livros do
Antigo Testamento, bem longe de apagar-se nas páginas do Novo, vem ali, ao
invés, confirmada do modo mais esplêndido e em termos admiráveis. Bastará
lembrar apenas a mensagem do Arcanjo à Virgem, a anunciar-lhe que dará à luz um
Filho; a este Filho, Deus outorgará “o trono de David, seu pai, e reinará
eternamente na casa de Jacob, e seu reino não terá fim” (Lc 1, 32-33). Ouçamos
agora o testemunho do próprio Cristo no tocante à sua soberania. Sempre que se
Lhe oferece ensejo, — em seu último discurso ao povo, sobre a recompensa e os
castigos que, na vida eterna, aguardam os justos e os maus; em sua resposta ao
governador romano que Lhe perguntara se era Rei; depois de sua ressurreição,
quando confia aos Apóstolos a missão de instruírem e batizarem todas as nações,
— reivindica o título de “Rei” (Mt 25, 31-40), e publicamente declara que é “Rei”
(Jo 18, 37) e que “todo poder Lhe foi dado no Céu e sobre a Terra” (Mt 28, 18).
Que entende com isto, senão afirmar a extensão de sua potência, a imensidade do
seu reino? À vista disto, deverá fazer-nos estranheza que S. João o proclame “Príncipe
dos reis da terra? (Apoc 1, 5) ou que, aparecendo o próprio Jesus ao mesmo
Apóstolo em suas visões proféticas “traga escrito no vestido e na coxa: Rei dos
reis e Senhor dos senhores”? (Apoc 19, 16). O Pai, com efeito, constituiu a
Cristo “herdeiro de todas as coisas” (Heb 1, 1). Cumpre que reine até o fim dos
tempos, quando “arrojará todos os seus inimigos sob os pés de Deus e do Pai” (1
Cor 15, 25).
Testemunho da Liturgia
9.
Desta doutrina comum a todos os livros santos, naturalmente dimana a seguinte
consequência: justo é que a Igreja Católica, reino de Cristo na Terra, chamada
a estender-se a todos os homens, a todas as nações do universo, multiplicando
os preitos de veneração, celebre, no ciclo anual da Liturgia Santa, a seu Autor
e Instituidor como a Rei, como a Senhor, como a Rei dos reis. Com admirável
variedade de fórmulas, estas homenagens expressam um e o mesmo pensamento;
desses títulos servia-se a Igreja outrora no divino ofício e nos antigos
sacramentados; repete-os ainda agora, nas preces públicas, que todos os dias
dirige à Infinita Majestade e na oblação da Hóstia Imaculada. Nesse louvor
ininterrupto de Cristo-Rei, nota-se para logo a formosa harmonia dos nossos
ritos com os ritos orientais, verificando-se aqui também a verdade, do
prolóquio: “as normas da oração confirmam os princípios da Fé”.
Argumento teológico
10.
O fundamento sobre que pousa esta dignidade e poder de Nosso Senhor, define-o
exatamente S. Cirilo de Alexandria, quando escreve: “Numa palavra, possui o
domínio de todas as criaturas, não pelo ter arrebatado com violência, senão em
virtude de sua essência e natureza” (In Lucam, 10). Esse poder dimana daquela
admirável união que os teólogos chamam de “hipostática”. Portanto, não só
merece Cristo que anjos e homens O adorem como a seu Deus, senão que também
devem homens e anjos prestar-Lhe submissa obediência como a Homem. E assim, só
em força dessa união, a Cristo cabe o mais absoluto poder sobre todas as
criaturas, posto que, durante sua vida mortal, renunciasse ao exercício desse
domínio.
—
Mas haverá, outrossim, pensamento mais suave do que refletir que Cristo é nosso
Rei não só por direito de natureza, mas também a título de Redentor? Lembrem-se
os homens esquecidos de quanto custamos a nosso Salvador. “Não fostes
resgatados a preço de coisas perecíveis, prata e outro, mas com o sangue
precioso de Cristo, como de cordeiro sem mancha nem defeito” (1 Ped 1, 18-19).
Já nos não pertencemos, pois que deu Cristo por nós “tão valioso resgate” (1
Cor 6, 20). Até nossos corpos são “membros de Cristo” (1 Cor 6, 15).
ÍNDOLE
DA REALEZA DE CRISTO
A Cristo-Rei cabe o poder legislativo, judicial, executivo
11.
Para dizer, em poucas palavras, a importância e índole desta realeza, será
apenas necessário asserir que abrange um tríplice poder constitutivo, essencial
de toda realeza verdadeira. Provam-no de sobejo os testemunhos de toda a
Escritura no tocante à dominação universal de nosso Redentor, e é artigo de fé
católica: Cristo Jesus foi dado aos homens não só como Redentor, que lhes
merece toda confiança, mas também como Legislador, a quem devemos prestar
obediência (Conc. Trid., Sess. 6, can. 21). E, com efeito, não dizem os
Evangelhos tão só que promulgou leis, mas no-lo representam no ato de promulgar
as leis. A quantos observarem os seus preceitos, declara o Divino Mestre, em
várias ocasiões e de diversos modos, que com isto mesmo Lhe hão de provar o seu
amor e permanecer em sua caridade (Jo 14, 15); 15, 10). —
Quanto ao “poder judicial”, declara o próprio Jesus havê-lo
recebido de seu Pai, em resposta aos judeus, que o haviam acusado de violar o
descanso do sábado, curando milagrosamente, neste dia, a um paralítico. “O
Pai, disse-lhes o Salvador, não julga a ninguém, mas deu
todo juízo ao Filho” (Jo 5, 22). Esse poder judicial igualmente inclui o “direito”,
— que se não pode dele separar, — de “premiar” e “punir” aos homens, mesmo
durante a vida. — A Cristo compete o “poder executivo”, porquanto devem todos
sujeitar-se ao seu domínio, e quem for rebelde não poderá evitar a condenação e
os suplícios, que Jesus prenunciou.
Realeza
espiritual
12.
Esta realeza, porém, é principalmente interna e
respeita sobretudo a ordem espiritual. Provam-no com toda
evidência as palavras da Escritura acima referidas, e,
em muitas circunstâncias, o proceder do próprio Salvador.
Quando os judeus, e até os Apóstolos, erradamente imaginavam que o Messias
libertaria seu povo para restaurar o reino de Israel, Jesus desfez o erro e
dissipou a ilusória esperança. Quando, tomada de entusiasmo, a turba, que O
cerca, O quer proclamar rei, com a fuga furta-se o Senhor a estas
honras, e oculta-se. Mais tarde, perante o governador romano, declara que seu
reino “não é deste mundo”. Neste reino, tal como no-lo descreve o Evangelho, é
pela penitência que devem os homens entrar. Ninguém, com efeito, pode nele ser
admitido sem a fé e o batismo; mas o batismo, conquanto seja um rito exterior,
figura e realiza uma regeneração interna. Este reino opõe-se ao reino de
Satanás e ao poder das trevas; de seus adeptos exige o desprendimento não só
das riquezas e dos bens terrestres, como ainda a mansidão, a fome e sede da
justiça, a abnegação de si mesmo, para carregar com a cruz. Foi para adquirir a
Igreja que Cristo, enquanto “Redentor”, verteu o seu sangue; para isto é, que,
enquanto “Sacerdote”, se ofereceu e de contínuo se oferece como vítima. Quem
não vê, em consequência, que sua realeza deve ser de índole toda espiritual, e
participar da natureza deste seu duplo ofício?
13.
Todavia, fora erro grosseiro denegar a Cristo Homem a soberania sobre as coisas
temporais todas, sejam quais forem. Do Pai recebeu Jesus o mais absoluto
domínio das criaturas, que Lhe permite dispor delas todas como Lhe aprouver.
Contudo, enquanto viveu sobre a Terra, absteve-se totalmente de exercer este
domínio temporal, e desprezou a posse e regimento das coisas humanas, que
deixou — e deixa ainda — ao arbítrio e domínio dos homens. Verdade
graciosamente expressa no conhecido verso: “Não arrebata diademas terrestres,
quem distribui coroas celestes. — Non eripit mortalia, qui regna dat caelestia”
(Hino Crudelis Herodes, of. da
Epif.).
Realeza universal
14.
Assim, pois, a realeza do nosso Redentor abraça a totalidade dos homens. Sobre
este ponto, de muito bom grado fazemos Nossas as palavras seguintes de Nosso
Predecessor Leão XIII, de imortal memória: “Seu império não abrange tão só as
nações católicas ou os cristãos batizados, que juridicamente pertencem à
Igreja, ainda quando dela separados por opiniões errôneas ou pelo cisma:
estende-se igualmente e sem exceções aos homens todos, mesmo alheios à fé
cristã, de modo que o império de Cristo Jesus abarca, em todo rigor da verdade,
o gênero humano inteiro” (Encícl. Annum Sacrum, 25
de Maio de 1899). E, neste particular, não cabe fazer distinção entre os
indivíduos, as famílias e os estados; pois os homens não estão menos sujeitos à
autoridade de Cristo em sua vida coletiva do que na vida individual. Cristo é
fonte única de salvação para as nações como para os indivíduos. “Não há
salvação em nenhum outro; porque abaixo do Céu nenhum outro nome foi dado aos
homens, pelo qual nós devamos ser salvos” (At 4, 12). Dele provêm ao estado
como ao cidadão toda prosperidade e bem-estar verdadeiro. “Uma e única é a
fonte da ventura, assim para as nações como para os indivíduos, pois outra
coisa não é a cidade mais que uma multidão concorde de indivíduos” (S. Aug., Epist.
ad Macedonium, c. 3). Não podem, pois, os homens de governo recusar à soberania
de Cristo, em seu nome pessoal e no de seus povos, públicas homenagens de
respeito e submissão. Com isto, sobre estearem o próprio poder, hão de promover
e aumentar a prosperidade nacional.
BENEFÍCIOS
SOCIAIS DESTA REALEZA
Crise da autoridade
15.
Ao subirmos à cátedra pontifical, deplorávamos o lastimável decaimento em que
vemos abatido o prestígio do direito e a reverência à autoridade. Quanto então
dizíamos não é hoje menos atual ou oportuno. “Excluídos da legislação e dos
negócios públicos Deus e Jesus Cristo, e derivando, os que regem, o seu poder,
não já do alto, mas dos homens, aconteceu que ruiu o próprio fundamento da
autoridade, em consequência de estar removida a razão fundamental do direito
que a uns assiste de mandar, e da obrigação consequente que têm outros de
obedecer. Seguiu-se daí forçosamente um abalo na humana sociedade inteira,
falha assim de amparo e sustentáculo firme” (Encícl. Ubi
arcano, DP 19). Se soubessem resolver-se os homens a
reconhecer a autoridade de Cristo em sua vida particular e pública, para logo
deste ato dimanariam em toda a humanidade incomparáveis benefícios: —: uma
justa liberdade, a ordem e o sossego, a concórdia e a paz.
No interior dos estados
16.
Com dar à autoridade dos príncipes e chefes de governo certo caráter sagrado, a
dignidade real de Nosso Senhor enobrece com isto mesmo os deveres e a sujeição
dos cidadãos. Tanto assim que o Apóstolo S. Paulo, depois de prescrever às
mulheres casadas e aos escravos de reconhecerem a Cristo na pessoa de seus
maridos e senhores, lhes recomendava, ainda assim, de obedecerem não
servilmente, como a homens, mas tão só em espírito de fé como a representantes
de Cristo, porque ,é indigno de uma alma resgatada por Cristo obedecer com
servilismo a um homem. “Fostes resgatados com grande preço: não estejais
sujeitos já como escravos a homens” (1 Cor 7, 23). Se os príncipes e governos
legitimamente constituídos tivessem a persuasão de que regem menos no próprio
nome do que em nome e lugar do Rei Divino, é
manifesto que usariam do seu poder com toda a prudência, com
toda a sabedoria possíveis. Em legislar e na aplicação das leis, como haveriam
de atender ao bem comum e à dignidade humana de seus súbditos! Então
floresceria a ordem, então víramos difundir-se e firmar-se a tranquilidade e a
paz; embora o cidadão reconhecesse nos príncipes e chefes de governo homens
iguais a si pela natureza ou mesmo, por algum respeito, indignos ou
repreensíveis, não deixara por isto de lhes obedecer, por depreender neles a
imagem e autoridade de Cristo, Deus-Homem.
Vantagens sociais para
as nações
17.
Pelo que respeita à concórdia e à paz, é manifesto que, quanto mais vasto é um
reino, quanto mais largamente abraça o gênero humano, tanto é maior a
consciência em seus membros do vínculo de fraternidade que os une. Esta
consciência, assim como remove e dissipa os frequentes conflitos, assim também
atenua e suaviza os amargores que dos conflitos nascem. E se o reino de Cristo
abarcara de fato, como de direito abarca, as nações todas, porque deveríamos
perder a esperança dessa paz que à Terra veio trazer o Rei pacífico, esse Rei
que veio “para reconciliar todas as coisas” (Col 1, 20), “que não veio para ser
servido, mas para servir aos outros” (Mc 10, 45) e que, embora “Senhor de todos”
(Gál 4, 1), deu exemplo de humildade e principalmente inculcou esta virtude, de
envolta com a caridade, acrescentando: “Meu jugo é suave, e é leve minha carga”
(Mt 11, 30). Oh! que ventura não pudéramos gozar, se os indivíduos, se as
famílias, se a sociedade se deixasse reger por Cristo! “Então, finalmente —
para citarmos as palavras que, há 25 anos, Nosso Predecessor Leão XIII dirigia
aos Bispos do mundo inteiro — então fora possível sanar tantas feridas; o
direito recobrara seu antigo viço, seu prestígio de outras eras; então tornaria
a paz com todos os seus encantos e cairiam das mãos armas e espadas, quando
todos de bom grado aceitassem o império de Cristo, Lhe obedecessem, e
toda língua proclamasse que “Nosso Senhor Jesus Cristo está
na glória de Deus Padre” (Ene. Annum Sacrum).
A
FESTA DE JESUS CRISTO-REI
18.
E a fim de que a sociedade cristã goze largamente de tão preciosas vantagens e
para sempre as conserve, é mister que se divulgue quanto possível o
conhecimento da dignidade real de Nosso Salvador. Ora, nada pode, pelo que Nos
parece, conseguir melhor este resultado, do que a instituição de uma festa
própria e especial em honra de Cristo-Rei.
Influência da liturgia
na vida cristã
19.
Com efeito, para instruir o povo nas verdades da fé e levá-lo assim às alegrias
da vida interna, mais eficazes que os documentos mais importantes do Magistério
eclesiástico são as festividades anuais dos sagrados mistérios. Os documentos
do Magistério, de fato, apenas alcançam um restrito número de espíritos mais
cultos, ao passo que as festas atingem e instruem a universalidade dos fiéis.
Os primeiros, por assim dizer, falam uma vez só, as segundas falam sem intermitência
de ano para ano; os primeiros dirigem-se, sobretudo, ao entendimento; as
segundas influem não só na inteligência, mas também no coração, quer dizer — no
homem todo. Composto de corpo e alma, precisa o homem dos incitamentos
exteriores das festividades, para que, através da variedade e beleza dos
sagrados ritos, recolha no ânimo a divina doutrina, e, transformando-a em
substância e sangue, tire dela novos progressos em sua vida espiritual.
Origem
histórica e providencial das festas
na Igreja
20.
Além disso, ensina-nos a própria história, que estas festividades litúrgicas
foram introduzidas, no decorrer dos séculos, umas após outras, para responder a
necessidades ou vantagens espirituais do povo cristão. Foram-se constituindo
para fortalecer os ânimos em presença de algum perigo comum, para premunir os espíritos
contra os ardis da heresia, para mover e inflamar os corações a celebrar com
mais ardente piedade algum mistério de nossa fé ou algum benefício da divina
graça. Assim é que, desde os primeiros tempos da era cristã, quando, acossados
das mais cruentas perseguições, os fiéis começaram, com sagrados ritos, a
comemorar os mártires, para que — como diz S. Agostinho — “as solenidades dos
mártires fossem exortação ao martírio” (Sermo 47, de Sanctis). As honras
litúrgicas, mais tardes decretadas aos confessores, às virgens, às viúvas,
contribuíram singularmente para promover nos fiéis o zelo pela virtude,
indispensável mesmo em tempo de paz. Especialmente as festas em honra da Virgem
Beatíssima fizeram com que o povo cristão não só tributasse à Mãe de Deus, sua
Protetora por excelência, culto mais assíduo, senão que ao mesmo tempo fosse de
contínuo crescendo seu amor filial à Mãe que o Redentor lhe deixara como que em
testamento. Dentre os benefícios que dimanaram do culto público e legitimamente
prestado à Mãe de Deus e aos Santos do Céu, não é o menor a vitória constante
com que a Igreja se cobriu de louros, ao debelar e repelir a heresia e o erro.
E nisto devemos admirar os desígnios da Divina Providência, que, segundo
costuma, tira o bem do mal. Permitiu que, de tempos a tempos, entibiasse a fé e
a piedade popular; permitiu que doutrinas errôneas armassem insídias à piedade
católica, mas sempre com o intuito de fazer finalmente fulgir a verdade com
novo esplendor e mover os fiéis, espertos da tibieza, a tenderem com novo zelo
a graus mais elevados de santidade e perfeição cristã. Idêntica é a origem, idênticos
os frutos que produziram as solenidades recentemente introduzidas no calendário
litúrgico. Tal é a festa do “Corpus Christi”, instituída quando se esfriava a
reverência e o culto para com o SS. Sacramento; celebrada com brilho singular,
protraída por oito dias de suplicações coletivas, a nova solenidade
devia reconduzir os povos à adoração pública do
Senhor. Tal é a festa do Coração Santíssimo de Jesus
estabelecida na época em que, abatidos e desalentados pelas tristes doutrinas e
o rigorismo sombrio do jansenismo,
os fiéis sentiam seus corações regelados e com escrúpulo deles excluíam todo
sentimento de amor de Deus e a
esperança de conseguirem a eterna salvação.
Oportunidade da
festa
21.
Para Nós também
soou a hora de provermos às necessidades dos tempos presentes e de opormos um
remédio eficaz à peste que corrói a sociedade humana. Fazemo-lo, prescrevendo
ao universo católico o culto de Cristo-Rei. Peste de nossos tempos é o chamado “laicismo”,
com seus erros e atentados criminosos.
Excessos do
laicismo
22.
Como bem sabeis, Veneráveis Irmãos, não é num dia que esta praga chegou à sua
plena maturação; há muito, estava latente nos estados modernos. Começou-se,
primeiro, a negar a soberania de Cristo sobre todas as nações; negou-se,
portanto, à Igreja o direito de doutrinar o gênero humano, de legislar e reger
os povos em ordem à eterna bem-aventurança. Aos poucos, foi equiparada a
religião de Cristo aos falsos cultos e indecorosamente rebaixada ao mesmo
nível. Sujeitaram-na, em seguida, à autoridade civil, entregando-a, por assim
dizer, ao capricho de príncipes e governos. Houve até quem pretendesse substituir
à religião de Cristo um simples sentimento de religiosidade natural. Certos
estados, por fim, julgaram poder dispensar-se do próprio Deus e fizeram
consistir sua religião na irreligião e no esquecimento consciente e voluntário
de Deus.
Frutos perniciosos
do laicismo
23.
Os frutos sobremodo amargosos que, tantas vezes
e com tanta persistência, produziu esta apostasia dos
indivíduos e dos
estados, que desertam a Cristo, expendemo-los na Encíclica “Ubi
arcano”. Tornamos a lamentá-los hoje. Frutos desta
apostasia são os germes de ódio esparsos por toda parte, as invejas e
rivalidades entre nações, que alimentam as discórdias internacionais e
dificultam ainda agora a restauração da paz; frutos desta apostasia as ambições
desenfreadas, que muitas vezes se encobrem com a máscara do interesse público e
do amor da pátria, e suas tristes consequências: dissensões civis, egoísmo cego
e desmedido, sem outro fito nem outra regra mais que vantagens pessoais e
proveitos particulares. Fruto desta apostasia a perturbação da paz doméstica,
pelo esquecimento e desleixo das obrigações familiares, o enfraquecimento da
união e estabilidade no seio das famílias, e por fim o abalo na sociedade toda,
que ameaça ruir.
Pusilanimidade de certos
católicos
24.
A festa, doravante ânua, de “Cristo-Rei” dá-nos a mais viva esperança de
acelerarmos a tão desejada volta da humanidade a seu Salvador amantíssimo.
Fora, com certeza, dever dos católicos, apressar e preparar esta volta com
diligente empenho; a muitos deles, contudo, pelo que parece, não toca, na
sociedade civil, o posto e a autoridade que conviriam aos apologistas da fé.
Talvez deva este fato atribuir-se à indolência e timidez dos bons que se abstêm
de toda resistência, ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários da
Igreja, novo acréscimo de pretensões e de audácia. Mas, desde que a massa dos
fiéis se compenetre de que é obrigação sua combater com valentia e sem tréguas
sob os estandartes de Cristo-Rei, o zelo apostólico abrasará seus corações, e
todos se esforçarão de reconciliar com o Senhor as almas que o ignoram ou dele
desertaram; todos, enfim, se esforçarão por manter inviolados os direitos do
próprio Deus.
Protesto e reparação
25.
Mas não basta. Uma festa, anualmente celebrada por todos os povos em homenagem
a Cristo-Rei, será sobremaneira eficaz para condenar e ressarcir, de
algum modo, esta apostasia pública, tão desastrada para as
nações, gerada pelo laicismo. Com efeito, quanto mais vergonhosamente se passa
em silêncio, quer nas conferências internacionais, quer nos Parlamentos, o nome
suavíssimo do nosso Redentor, tanto mais alto o devemos aclamar, tanto mais
devemos reconhecer os direitos que a Cristo conferem sua dignidade e poder
real.
CONVENIÊNCIAS
ATUAIS DA INSTITUIÇÃO DA FESTA
Precedentes da
festa de
Cristo-Rei
26.
E quem não vê que, desde os últimos anos do século passado, se ia, de modo
admirável, preparando o caminho à instituição desta festa? Ninguém, com efeito,
ignora como, com livros que se escreveram nas várias línguas do mundo inteiro, este
culto foi explicado e doutamente defendido. Sabem todos que a autoridade e
realeza de Cristo foi já reconhecida pela piedosa prática de se consagrarem e
dedicarem ao Sagrado Coração de Jesus famílias inumeráveis. E não só famílias,
mas também estados e reinos praticaram o mesmo ato. Antes, por iniciativa e
direção de Leão XIII, o universo gênero humano foi felizmente consagrado a este
Coração Santíssimo, no correr do Ano Santo de 1900. Não podemos preterir os
congressos eucarísticos que nossa época viu multiplicar-se em tão grande
número. Tão bem serviram à causa da solene proclamação humana. Reunidos para
apresentar à veneração e às homenagens populares de uma diocese, de uma
província, de uma nação, ou mesmo do mundo inteiro, Cristo-Rei, oculto sob os
véus eucarísticos, esses congressos, em conferências realizadas nas suas
assembleias, em sermões proferidos nas igrejas, por meio da exposição pública
ou da adoração em comum do Santíssimo Sacramento e de grandiosas procissões,
enaltecem a Cristo como a Rei que de Deus receberam os homens. Este Jesus, que
os ímpios recusaram acolher quando veio a seu reino, pode-se dizer, com toda a
verdade, que o povo cristão, movido de uma inspiração divina, vai arrancá-l’O
ao silêncio e, por assim dizer, à obscuridão dos templos, para levá-l’O, qual
triunfador, pelas ruas das grandes cidades e reintegrá-l’O em todos os direitos
de sua realeza.
Excelentes disposições
dos fiéis ao saírem do jubileu
27.
Para a realização deste Nosso desígnio, de que acabamos de falar, oferece-Nos
ensejo sumamente oportuno o “Ano Santo” que finda. Este ano veio relembrar ao
espírito e ao coração dos fiéis os bens celestes que sobrepujam todo sentimento
natural. Em sua bondade infinita, Deus restitui a uns a sua graça, e confirma a
outros no bom caminho, infundindo-lhes novo ardor para aspirarem a dons mais
perfeitos. Quer atendamos às numerosas súplicas que nos foram dirigidas, quer
consideremos os acontecimentos que se dirigidas, quer consideremos os
acontecimentos que se deram no correr do “Ano Santo”, sobeja razão nos assiste
de pensarmos que deveras para Nós soou a hora de proferirmos a sentença tão
ansiosamente de todos aguardada e que decretemos uma festa especial em honra de
Cristo, Rei de todo o gênero humano. Durante este ano, com efeito, como a
princípio dissemos, este divino Rei, deveras admirável em seus Santos,
conquistou novos triunfos, com a elevação às honras dos altares de mais um manípulo
de soldados seus. Durante este ano, uma exposição extraordinária pôs ante os
olhos do mundo as fadigas e, de algum modo, os próprios trabalhos dos arautos
do Evangelho, e todos puderam admirar as vitórias ganhas por esses campeões de
Cristo, para a extensão do seu reino; durante este ano, finalmente, com o
centenário do Concílio de Niceia, comemoramos, contra os seus detratores, a
defesa e definição do dogma da consubstancialidade do Verbo Humanado com seu
Pai, verdade na qual descansa, como em fundamento, a soberania de Cristo sobre
todos os povos.
Data e
modalidade da festa
28.
Portanto, em virtude de Nossa autoridade apostólica, instituímos a festa de “Nosso
Senhor Jesus Cristo Rei”, mandando que seja celebrada cada ano, no mundo
inteiro, no último domingo de Outubro imediato à solenidade de Todos os Santos.
Prescrevemos igualmente que, cada ano, se renove, nesse dia, a consagração do
gênero humano ao Coração de Jesus, que já Nosso Predecessor de saudosa memória
Pio X ordenara se fizesse anualmente. Contudo, queremos que, neste ano, a
renovação se faça a 31 de Dezembro; nesse dia, celebraremos missa pontifical em
honra de “Cristo-Rei”, e mandaremos proferir, em Nossa presença, o ato de
consagração. Quer parecer-Nos que não pode haver melhor encerramento do “Ano
Santo”, e que destarte daremos a “Cristo, Rei Imortal dos séculos”, o
testemunho mais eloquente de nossa gratidão e do reconhecimento do universo
católico, de quem Nos fazemos intérpretes, pelos benefícios que, neste período
de graças, concedeu a Nós mesmo, à Igreja, à cristandade toda.
Objeto formal
da nova festa
29.
É escusado, Veneráveis Irmãos, explicar-vos longamente os motivos de uma festa
especial em honra de “Cristo-Rei”. Pois, conquanto outras festas, já
existentes, enalteçam e de algum modo glorifiquem sua dignidade real, basta,
contudo, observar que, se todas as festas de Nosso Senhor têm a Cristo, segundo
a linguagem dos teólogos, por “objeto material”, de modo algum é o poder e
apelativo de Rei “objeto formal” das mesmas.
Seu lugar no
ciclo litúrgico
30.
Fixando a nova festa em um domingo, quisemos que o clero fosse o único em
prestar suas homenagens a “Cristo-Rei”, com a celebração do Santo Sacrifício e
a reza do Santo Ofício, mas que o povo, desimpedido de suas ocupações
ordinárias, e animado de santa alegria, pudesse dar a Cristo, como a seu Senhor
e Soberano, um manifesto testemunho de obediência. Finalmente mais apropriado
Nos pareceu o último domingo de Outubro, porque este domingo, em certo modo,
encerra o ciclo do ano litúrgico; destarte, os mistérios da vida de Jesus
Cristo, comemorados no decorrer do ano que finda, terão na solenidade de “Cristo-Rei”
seu como termo e coroa, e antes de celebrar a glória de todos os Santos, a
liturgia proclamará e enaltecerá a glória d'Aquele que em todos os Santos e em
todos os eleitos triunfa. É dever, é direito vosso, Veneráveis Irmãos, fazer
preceder a festa por uma série de instruções que se dêem, em dias determinados,
nas diferentes paróquias, para instruir acuradamente o povo da natureza,
significado e importância desta festa, por onde os fiéis regulem a sua vida em
modo a torná-la digna de súbditos leais e submissos de coração à soberania do
Divino Rei.
Esperanças e augúrios
31.
Ao fecharmos esta carta, quiséramos ainda, Veneráveis Irmãos, expor-vos
brevemente os frutos, que, tanto para a Igreja e a sociedade civil, como para
cada um dos fiéis, esperamos deste culto público prestado a Cristo-Rei.
Melhor compreensão dos
direitos da Igreja
32.
A obrigação de tributar à soberania de Nosso Senhor as homenagens, a que nos
referimos, relembra, juntamente, aos homens os direitos da Igreja. Instituída
por Cristo, que lhe deu a forma orgânica de sociedade perfeita, exige, em
virtude deste direito, que dimana de sua origem divina e que ela não pode
abdicar, a plena liberdade, a independência absoluta do poder civil. No
desempenho de sua divina missão, de ensinar, reger e conduzir à eterna
felicidade todos os membros do reino de Cristo, não pode, de modo algum,
depender de vontade estranha. Antes, idêntica liberdade deve o estado conceder
às ordens e congregações religiosas de ambos os sexos, pois são os auxiliares
mais firmes dos Pastores da Igreja, os que mais eficazmente se empenham em
difundir e confirmar o reinado de Cristo, primeiro debelando em si, com a
profissão religiosa, o mundo e sua tríplice concupiscência, e depois, pelo fato
de haverem abraçado uma profissão de vida mais perfeita, fazendo resplandecer
aos olhos de todos, com fulgor contínuo e cada dia crescente, esta santidade de
que o divino Fundador quis fazer uma nota distinta de sua Igreja autêntica.
Restauração do
culto público e oficial
33.
Com a celebração ânua desta festa hão de relembrar-se, outrossim, os Estados
que aos governos e à magistratura incumbe a obrigação, bem assim como aos
particulares, de prestar culto público a Cristo e sujeitar-se às suas leis. Lembrar-se-ão
também os chefes da sociedade civil do juízo final, quando Cristo acusará aos
que o expulsaram da vida pública, e a quantos,
com desdém, o desprezaram ou desconheceram; de tamanha afronta há de tomar o
Supremo Juiz a mais terrível vingança; seu poder real, com efeito, exige que o
Estado se reja totalmente pelos mandamentos de Deus e os princípios cristãos,
quer se trate de fazer leis, ou de administrar a justiça, quer da educação
intelectual e moral da juventude, que deve respeitar a sã doutrina e
a pureza dos costumes.
Grande impulso
à piedade dos fiéis
34.
Que energias, além disso, que virtude não poderão os fiéis haurir da meditação
destas verdades, para amoldar seus espíritos aos princípios verdadeiros da vida
cristã! Se todo o poder foi dado ao Senhor Jesus, no céu e na terra, se os
homens, resgatados pelo seu sangue preciosíssimo, se tornam, com novo título,
súditos de seu império, se, finalmente, este poder abraça a natureza humana em
seu conjunto, é claro que nenhuma de nossas faculdades se pode subtrair a essa
realeza. É mister, pois, que reine em nossas inteligências: com plena
submissão, com adesão firme e constante, devemos crer as verdades reveladas e
os ensinos de Cristo. É mister que reine em nossas vontades: devemos observar
as leis e os mandamentos de Deus. É mister que reine em nossos corações:
devemos mortificar nossos afetos naturais, e amar a Deus sobre todas ,as
coisas. É mister que reine em nossos corpos e em nossos membros: devemos
transformá-los em instrumentos, ou, para falarmos com S. Paulo (Rom 6, 13), “em
armas de justiça, oferecidas a Deus”, para aumento da santidade de nossas
almas. Eis os pensamentos que, propostos à reflexão dos fiéis e atentamente
ponderados, hão de facilmente levá-los a mais elevada perfeição.
Augúrio final
35.
Praza a Deus, Veneráveis Irmãos, que os homens, afastados da Igreja, procurem e
aceitem, para salvação de suas almas, o jugo suave de Cristo. Quanto a nós
todos, por divina misericórdia, súbditos e filhos seus, queira Deus que levemos
este jugo, não de má vontade, mas com prazer, mas com amor, mas santamente.
Assim, no decorrer de uma vida pautada pelas leis do reino do céu,
recolheremos, alegres, grande cópia de frutos, e mereceremos que Cristo,
reconhecendo-nos por bons e fiéis servidores de seu reino terrestre, nos
admita, depois, a participar com Ele da eterna felicidade e da glória sem fim
em seu reino celeste.
Aceitai,
Veneráveis Irmãos, ao decorrerem as festas natalícias do Senhor, este presságio
e este augúrio, como prova de Nosso paternal afeto, e, como penhor de divinos
favores, recebei a bênção apostólica, que, com toda a alma, vos concedemos a
Vós, Veneráveis Irmãos, ao vosso clero e à vossa grei.
Dada em Roma, junto a S. Pedro, aos 11 de
Dezembro do
Ano Santo de 1925, quarto do Nosso
Pontificado.
Pio
PP. XI
* II edição, 1950, Editora Vozes Ltda.,
Petrópolis, R. J. Rio de Janeiro-São Paulo.
Imprima-se por comissão especial do Exmo. e Revmo. Sr. Dom Manuel Pedro da Cunha
Cintra, Bispo de Petrópolis. Frei Lauro Ostermann O. F. M, Petrópolis,
9-11-1950.