Hugues
Bousquet
Artigo publicado em francês na revista “Le Sel de La Terre”, nº 67,
inverno 2008-2009, pp. 106-148. O original pode ser adquirido em: https://www.dominicainsavrille.fr/search/le+sel+de+la+terre/page/6/?s=le+sel+de+la+terre
Tradução
Fabio
Florence
Buscai em primeiro lugar o
reino de Deus e sua justiça,
e o resto vos será dado por acréscimo (Mt 6, 33)
Há
alguns meses, uma dura crise atinge a economia mundial. Nossa fé católica nos
aduz luzes sobre esta situação: se nossas sociedades estão doentes, é antes de
tudo porque escolheram apegar-se a Mammon em lugar de Nosso Senhor Jesus
Cristo. O verdadeiro remédio para a crise está no retorno ao reinado social do
Cristo Rei.
A
obediência a Nosso Senhor não produz somente a paz e a alegria nas almas, ela é
também um fator de prosperidade pública. A experiência o mostrou diversas
vezes; por exemplo, quando García Moreno assumiu o poder no Equador no século
XIX: ele recuperou em pouco tempo as finanças de seu país, simplesmente porque
os cidadãos adquiriram hábitos de justiça e de temperança: de poupança, por
exemplo.
“Buscai
em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça, e todo o resto vos será dado
por acréscimo”. Em meio a esse resto, encontra-se a prosperidade temporal. A
história do nosso país [a França] está aí para atestá-lo: enquanto foi fiel às
promessas do seu batismo, ele foi a primeira nação da Europa, e até mesmo do
mundo, mas, desde que as renegou, não faz outra coisa senão decair sob todos os
pontos de vista: econômico, político, cultural...
Sem
dúvida, lamentavelmente não dispomos dos meios políticos para implementar toda
a ordem social cristã. Todavia, cada um à sua medida, podemos colocar ordem na
esfera que depende de nós, e antes de tudo em nossas famílias.
O
autor do presente artigo se debruçou sobre o século de São Luís e o exemplo das
comunidades de ofícios. Ele daí extraiu conclusões práticas sobre “a reforma
das nossas vidas em família” para uma restauração da cristandade: aproximar-se
do modelo da família nuclear católica, privilegiar o enraizamento geográfico
das linhagens, escolher ofícios em conformidade com a ordem social cristã,
elaborar germes de comunidades cristãs de ofícios, reabrir escolas
profissionais católicas...
Revista
“Le Sel de la terre”.
SUMÁRIO
Introdução
Algumas definições e princípios
fundamentais de economia cristã
A
economia
O
ofício
Os
corpos naturais, os corpos intermediários e o princípio de subsidiariedade
A
comunidade de ofício
Sobre
a especulação e o lucro fácil
Sobre
o preço justo
Sobre
a livre concorrência
O espírito do século XIII,
espírito essencial das comunidades
O
espírito familiar; oficina e sociedade doméstica
O
feudalismo, o espírito consuetudinário
A
cristandade
A organização dos ofícios sob o
reinado de São Luís diante dos princípios
Uma
organização respeitadora dos fins do ofício e da economia
Uma
organização respeitadora do princípio de subsidiariedade
Uma
organização respeitadora dos princípios da economia cristã
Conclusão geral
*
Introdução
De
acordo com o ensinamento de Jean Vaquié, temos duas
batalhas a travar ao mesmo tempo: a batalha inferior, que é um combate de
conservação das posições católicas: as capelas, os conventos, as famílias e as
escolas, e a batalha preliminar, que é um combate espiritual de oração e de
penitência. Veremos que a questão dos ofícios e das comunidades de ofícios
decorre dessas duas batalhas: por um lado, uma economia cristã tem
participação na conservação da fé, e, por outro lado, ela coopera com a
penitência que Deus nos exige para mudar o mundo; daí a escolha do título
sugestivo que explicaremos: uma economia mortificada.
Trata-se,
pois, de considerar a reconstrução de corpos básicos de uma sociedade política
cristã. O que aqui nos interessa são os corpos intermediários econômicos: as
comunidades de ofícios.
Por
que as corporações juramentadas [jurandes] do século XIII? Em sua Carta
sobre o Sillon, São Pio X afirma, em uma declaração bem conhecida, que a
cristandade não deve ser novamente inventada:
Ela
existiu, diz ele, e existe; é a civilização cristã, é a cidade católica.
Trata-se unicamente de instaurá-la e de restaurá-la incessantemente sob seus
fundamentos naturais e divinos.
Algumas
definições e alguns princípios gerais de economia cristã
A
economia
De acordo
com Santo Tomás, “o fim último do governo doméstico [da economia] é o bem-viver
total no interior da sociedade familiar”. Este fim
último “requer antes de tudo a vida virtuosa” da família, mas
pressupõe, para a grande maioria, um certo nível de conforto material.
A
economia, no sentido de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino, é, pois, a
ciência da aquisição dos bens materiais e das riquezas a serviço da família,
aquisição ordenada à sua vida virtuosa. É isso que poderíamos qualificar, de
maneira um pouco redundante, de economia familiar, para evitar toda
ambiguidade.
Mas, na
linguagem corrente, aí compreendida a das encíclicas dos papas, porventura o
termo economia não adquiriu uma extensão maior? Dito de outra maneira,
porventura devemos banir a ideia de uma economia política, a serviço do bem
comum político, e não somente a serviço do bem comum familiar, sob o pretexto
de que Santo Tomás e Aristóteles não a levaram em consideração? Evidentemente
não. Cada sociedade intermediária, e a própria sociedade política, possui sua
economia própria, semelhante à economia familiar, que é a referência de todas.
Assim, a economia política terá por meta a independência material da sociedade
política, a economia comunal terá por meta a independência material da comuna,
etc. Cada esfera econômica diz respeito ao corpo em questão: a economia
familiar diz respeito à família, a economia de tal comunidade de ofício deve
ser implementada pela autoridade da comunidade em questão, a economia de uma
província pelo governo dessa província, e isto é válido para a sociedade
política e o seu governo.
O Estado
deve – por sua natureza – desempenhar unicamente funções que dizem respeito ao
bem comum universal e à realização da justiça distributiva. [...] O Estado não
poderia, portanto – e em verdade não pode – colocar-se no lugar dos órgãos da
vida econômica [as empresas e as comunidades de ofício] em suas funções
próprias e legítimas. Ele não deve absorvê-los; caso o faça, corre o risco de
diminuir sem razão a esfera do exercício legítimo da liberdade dos homens ou
das associações espontâneas destes.
A
economia política vem, portanto, servir o bem comum da sociedade política,
chamado aqui bem comum universal. Essa ciência permitirá aos governantes
assegurar a independência material da sua sociedade. Eis seu domínio de ação
própria. Ela não deve “absorver” os corpos inferiores e as economias destes. Ao
contrário, deve favorecer o desenvolvimento deles. E, em todo esse esquema em
cascata – da economia política à economia familiar – a economia familiar justa
e legítima não deve ser obstruída, mas deve ser promovida e desejada
precisamente em nome do bem comum, pois o bem-estar material das famílias é um
elemento constitutivo desse mesmo bem comum. Acrescentemos
que o ator fundamental da economia é a família. Empresas se formam de maneira
natural para assegurar a subsistência das famílias dos que as compõem, e para
levar a outras famílias o fruto de seus trabalhos: produtos ou serviços úteis.
Em uma sociedade orgânica (o contrário de uma potência estatista), corpos
intermediários econômicos nascem e se desenvolve de acordo com as necessidades
naturais das famílias que exercem um ofício determinado. Eles existem para
essas famílias, não o contrário. Assim também, “a família não existe para a
sociedade; é a sociedade que existe para a família”, diz Pio XII. É por essa
razão, por exemplo, que a economia comunal deve respeitar as diferentes
economias familiares – justas e legítimas, bem entendido – ao mesmo tempo que
busca a independência material que servirá o bem comum. Esta é uma regra
essencial para fixar a medida dos impostos locais. O mesmo vale para a economia
política, que não deve se imiscuir de maneira indevida nas economias familiares
por concessões de todos os tipos, ou, a contrario, por uma tributação
desmedida. No fundo, se
cada economia tem o seu fim próprio, ela deverá sempre respeitar, e até mesmo
favorecer, o fim e a atividade da economia familiar. Eis aí o elemento
permanente da economia em geral, aí compreendida a economia política, que está
a seu serviço. De que servirá a independência material da sociedade política
se, em tempos normais, as famílias agonizarem de pobreza? A economia marxista
nos mostra um sistema decapitado, voluntariamente, de seu modelo e de seu fim.
Nela já não se trata de economia familiar nem de patrimônio, só existe a
economia política, negando-se as realidades inferiores: eis o coletivismo. O
Estado absorve a economia em seu próprio benefício. Ele pode ser rico,
desenvolver programas nucleares ou espaciais, enquanto pauperiza as famílias
que compõem a sociedade. Trata-se de um modelo econômico injusto. Pio XI nos recorda
tudo isso em um contexto mais preciso. Ele ensina as leis gerais do salário
justo e as condições para a sua determinação, notadamente as exigências do bem
comum. Eis as suas afirmações:
O
organismo econômico e social será constituído de maneira sã e atingirá seu fim
somente quando proporcionar a todos e a cada um de seus membros todos os bens
que os recursos da natureza e da indústria, bem como a organização
verdadeiramente social da vida econômica, têm meios para proporcionar-lhes.
Esses bens devem ser suficientemente abundantes para satisfazer às necessidades
de uma subsistência honesta e para elevar os homens ao grau de conforto e de
cultura que – contanto que seja usado sabiamente – não crie obstáculos para a
virtude, mas facilite singularmente o exercício desta.
Este
ensinamento é confirmado por Pio XII:
O fim do
organismo econômico e social [...] é proporcionar aos seus membros e às suas
famílias todos os bens que os recursos da natureza e da indústria, bem como uma
organização social da vida econômica, têm meios de proporcionar-lhes, e,
conforme especifica Quadragesimo anno, esses bens devem ser
suficientemente abundantes para satisfazer as necessidades de uma subsistência
honesta e para elevar os homens ao nível de conforto que – contanto que seja
usado sabiamente – não crie obstáculos para a virtude, mas facilite amplamente
o exercício desta.
O
elemento permanente e o fim da economia – independentemente do nível onde nos
situemos – é, portanto, a independência material dos membros do corpo social:
as famílias.
Antes de
prosseguir, salientemos que, se cada economia possui sua esfera própria de
atividade legítima, a sociedade nem por isso fica compartimentada. Os corpos
não se opõem uns aos outros, nem as famílias e os corpos intermediários ao
governo da sociedade política. Nesse esquema orgânico geral, há evidentemente
uma compenetração necessária e até mesmo obrigatória das diferentes economias,
que recorre da natureza social do homem; no entanto, somente a sociedade
política possui em si mesma os meios para atingir o seu fim. Se o governo da
sociedade política deve “exercer unicamente funções que dizem respeito ao bem
comum universal e à realização da justiça distributiva”, essa tarefa implica
evidentemente um direito de fiscalização sobre a vida econômica dos corpos
inferiores. Ele deverá, por exemplo, se assegurar de que as estruturas
econômicas naturais existentes respeitam bem seus deveres de justiça
distributiva para com seus membros. Mas esta função é mais política do que
diretamente econômica. As atividades
puramente econômicas que cabem ao governo são da mesma ordem que as de uma
família: aquisição de riquezas e despesas tendo em vista o fim buscado. A
aquisição de riquezas aqui se faz essencialmente por intermédio de impostos e
de taxas. Daí se segue uma interferência inevitável nas economias dos corpos
inferiores (províncias, comunas, comunidades de ofícios, famílias...). No caso
de uma tributação normal, o governo não intervém nas diferentes economias para
“absorvê-las”. Aqui se trata de encher os cofres do tesouro público. É em nome
do bem comum que ele exigirá um imposto. A submissão das famílias e dos corpos
intermediários suscetíveis da imposição manifestará a ordenação natural e
necessária ao bem comum da sociedade como um todo.
Uma
economia ordenada ao seu verdadeiro fim se ocupará, portanto, essencialmente da
necessidade limitada das famílias, da independência material delas. Essa
independência deve ser real e não deve ter como custo uma dependência moral em
relação a uma ideologia condenada. É assim que Pio XI exclui dois erros
econômicos: antes de tudo, o liberalismo, que promove a remuneração máxima do
capital em detrimento dos operários, a quem pauperiza; em seguida, o
socialismo, fruto do liberalismo, que apregoa o coletivismo, ou, em uma forma
atenuada, a atribuição aos operários de todas as receitas, “uma vez feita a
dedução do que é exigido pela amortização e pela reconstituição do capital”.
No
primeiro caso, vemos toda uma classe da população a gravitar na esfera financeira
e comercial, e a se enriquecer de maneira ultrajante sendo carregados nas
costas dos operários tornados dependentes. Este é o modo de governo das
empresas capitalistas, cujos beneficiários, se são economicamente
independentes, o são bem menos do ponto de vista moral. Eles são com grande
frequência os primeiros escravos desse sistema, pois “os que desejam se tornar
ricos caem na tentação, na cilada do diabo e em muitos desejos inúteis e
perniciosos, que mergulham os homens na morte e na condenação” (1 Tm 6, 9).
No
segundo caso, a intervenção estatal fornece uma aparência de independência às
famílias por intermédio dos auxílios sociais múltiplos dos quais fazem parte os
benefícios familiares, auxílios que mantêm essas famílias numa situação de real
dependência econômica e moral em relação ao governo. Acrescentemos que a
independência material das famílias é objeto de dois dos seis critérios do
Padre Fahey para julgar se uma sociedade política é bem cristã.
O ofício
A
palavra ofício (métier) vem do latim ministerium, que significa
ministério. O ofício será, portanto, um ministério de utilidade pública.
Trata-se de uma função econômica na qual o homem aplica, de acordo com uma
certa competência (savoir-faire), “as energias do espírito e do corpo
aos bens da natureza”, ou se serve “destes últimos como de outros tantos
instrumentos apropriados” para fornecer
à sociedade bens ou serviços úteis, e, em troca, adquirir a independência
material da sua própria família.
A
nota de utilidade é profundamente cristã, mesmo que seja apenas raramente
primeira em nosso pensamento, uma vez que, em geral, pensamos antes de tudo na
conservação da nossa família. Ela deve, não obstante, nos distinguir dos
infiéis pela consciência de que nosso trabalho apresenta um caráter social, de
que sua necessidade ultrapassa as necessidades da nossa própria família, em uma
grandiosa visão do bem comum. Não é
suficiente pretender trabalhar exclusivamente no espírito de proporcionar
subsistência à própria família. Se o fizermos, esquecer-nos-emos com demasiada
frequência de considerar a legitimidade dos meios empregados (qual atividade
profissional? Em que tipo de empresa?). Isto decorre do ensinamento de Santo
Tomás sobre a natureza social do homem:
É
da natureza do homem, ensina ele, ser um animal social e político, que vive em
uma multidão, e isto mais ainda que todos os outros animais. A necessidade
natural o mostra. Com efeito, a natureza proporcionou aos outros animais a
alimentação, roupas de pelagem, meios de defesa [...]. O homem, ao contrário,
foi criado sem que nada disso lhe tenha sido preparado pela natureza, mas, em
lugar disso, foi-lhe dada a razão, que lhe permite preparar todas essas coisas
por meio de suas mãos. Para tanto, um só homem não é o suficiente, pois um só
homem não poderia, por si mesmo, garantir para si as coisas necessárias para a
vida. Daí se segue, pois, que é da natureza do homem viver em sociedade.
Donde
decorre a necessidade de uma reflexão sobre a utilidade social do ofício ou da
atividade profissional que exercemos.
Os corpos
naturais, os corpos intermediários e o princípio de subsidiariedade
Os
corpos naturais são associações formadas naturalmente de acordo com uma
necessidade circunstancial. Eles possuem um fim próprio, uma hierarquia própria
e regras ou costumes próprios. As famílias e as empresas, por exemplo, são
corpos naturais. O fato de que essas associações são naturais exclui o
intervencionismo estatal. Um governo não pode impor aos homens e mulheres a
obrigação de formar famílias. Isso corresponde à necessidade natural de ter
filhos e de se sustentar mutuamente, sendo tudo isso vinculado a uma afeição
inicialmente natural. O fim dessas sociedades naturais é, no entanto,
subordinado ao bem comum da sociedade política. É assim que o governo deve
impor a obrigação do matrimônio e a proibição da concubinagem.
Os
corpos intermediários são corpos naturais que formam o liame entre os corpos de
base da sociedade, que são as famílias e as empresas, e o corpo mais elevado de
todos, que é o governo. Eles têm, por um lado, uma vocação de servir seus
membros, e, por outro lado, uma vocação organizacional e política, que visa
estruturar a sociedade e permitir a aplicação mais justa do princípio de
subsidiariedade. Podemos citar, entre os corpos intermediários políticos, as
comunas, e, como corpos intermediários econômicos, as comunidades de ofícios.
O
princípio de subsidiariedade é um elemento fundamental da organização de uma
sociedade política. Ele estipula que cada corpo natural tem o direito de
exercer suas competências legítimas em seu lugar legítimo na cidade, sem que um
corpo superior, tal como o governo, intervenha na gestão de seus negócios
correntes, a menos que o bem comum seja tumultuado ou ameaçado. Pio XI recorda
a necessidade desse princípio nos seguintes termos:
Assim
como não se pode retirar dos particulares, para transferi-las à comunidade, as
atribuições que eles são capazes de exercer sozinhos por sua própria iniciativa
e por seus próprios meios, assim também seria uma injustiça, bem como um
transtorno extremamente danoso contra a ordem social, retirar dos grupos de
ordem inferior, para confiá-las a uma coletividade mais vasta e de um patamar
mais elevado, as funções que eles estão em condições de desempenhar por si
mesmos.
O
papel do governo em relação aos corpos inferiores é, a priori, nulo
quanto à sua gestão interna. Ele pode, em determinados casos, entrar no lugar
de um corpo inexistente ou deficiente, e deve sobretudo se assegurar de que o
fim buscado pelo corpo inferior está ordenado ao fim da sociedade como um todo.
Seu papel maior consiste na coordenação dos diferentes corpos constitutivos da
sociedade política tendo em vista o bem comum da multidão. Enfim, na aplicação
do princípio de subsidiariedade, convém considerar o fim dos corpos
intermediários para bem compreender suas relações para com o governo,
responsável pelo bem comum da sociedade política. Pio XII diz que “toda a
atividade social é, por sua natureza, subsidiária; ela deve servir de suporte
aos membros do corpo social, e jamais destruí-los ou absorvê-los”.
Em
outros termos, isso significa que um corpo intermediário possui seu fim
próprio, que é o bem comum do corpo em questão. Esse bem comum “serve de
suporte”, em um domínio determinado, aos membros que formam naturalmente essa
comunidade. Nesse sentido, o princípio de subsidiariedade não tolera a
intervenção do governo. Não cabe a ele formar corpos intermediários nem
conferir-lhes regulamentos. Estes devem se estabelecer espontaneamente de
acordo com uma necessidade natural dos “membros do corpo social”. A criação
pelo governo de tais comunidades intermediárias delas faz inevitavelmente
órgãos da administração pública, sem levar em
consideração o bem comum do corpo que é, entretanto, sua razão de ser. Os
corpos intermediários, todavia, não deixam de ter vínculo para com o governo.
Com efeito, Santo Tomás ensina que “a parte, enquanto tal, é algo do todo;
donde resulta que qualquer bem da parte deve estar subordinado ao bem do todo.
É assim que o bem de cada virtude, quer o das que ordenam o homem para consigo
mesmo, quer o das que o ordenam a outros indivíduos, deve poder ser referido ao
bem comum, ao qual a justiça nos ordena”.
Assim,
esse princípio nos recorda de que o bem comum de um corpo inferior é ordenado
ao bem comum da sociedade política. O governo deverá, então, incluir os fins
das comunidades intermediárias, e coordená-los em uma justa subordinação ao seu
próprio fim.
A
comunidade de ofícios
Aqui
se trata de um corpo intermediário cujos membros possuem o direito de exercer
um ofício em um território determinado. Ele era composto de mestres, criados [valets]
e aprendizes, que se comprometiam sob juramento a observar os regulamentos
prescritos pela comunidade tendo em vista o bem comum do ofício, e a respeitar
a autoridade dos jurados em suas funções de fiscalização. –
Temos
aí uma definição que coloca em evidência:
–
o fim das comunidades de ofícios: o bem comum do ofício. No século XIII, os
fins naturais primordiais são a honra do ofício e o controle da concorrência;
–
a hierarquia das comunidades: aprendizes, criados, mestres e jurados;
–
os meios para alcançar o fim: os regulamentos e os controles dos jurados,
efetuados em relação aos que exerciam o ofício, bem como o juramento destes
últimos. Há quem certamente ficará surpreso em encontrar nesta definição a
menção ao juramento. Ele era, no entanto, um elemento essencial da vida das
comunidades do século XIII. Ele formalizava o compromisso de buscar o bem comum
do ofício para todos os operários.
Sem
entrar de maneira muito precisa nos detalhes sobre a vida dessas comunidades,
pois teremos ocasião de fazê-lo na sequência, vejamos qual era o funcionamento
delas a partir dessa definição. Eis aí uma comunidade que é um corpo natural.
Ela possui, portanto, uma hierarquia: de baixo para cima, temos inicialmente os
aprendizes, para os quais o período de formação era obrigatório. No primeiro
dia do aprendizado, eles já eram membros da comunidade à qual prestaram
juramento. No século XIII, em princípio, uma pessoa ingressava no aprendizado
para tornar-se mestre; é conveniente notá-lo. Não obstante, nem todos
conseguiam-no, por razões financeiras ou morais, por exemplo. Ao final da
formação, alguns operários tornavam-se, então, criados. Mais tarde, a partir do
século XV, eles seriam chamados “companheiros” [compagnons]. Os mestres
eram chefes de empresas que, em sua grande maioria, eram pequenas empresas
familiares, nas quais aprendizes e criados conseguiam uma posição “familiar”.
Nessas oficinas, o que se buscava era a permanência das relações, a fim de
assegurar a estabilidade da vida familiar e econômica. Lá todos trabalhavam
juntos du nascer até ao pôr do sol, por volta de quatro a cinco dias por
semana. Com efeito, havia no século XIII numerosos feriados. Por fim, no ápice
da hierarquia encontravam-se os jurados, também chamados “guardas do ofício”.
Eles eram em geral eleitos pelos mestres da comunidade para garantir o bem
comum do ofício pelo prazo de um mandato. Com esse objetivo, eles eram
principalmente encarregados de controlar a qualidade dos produtos e dos
materiais, bem como o respeito aos procedimentos de fabricação honrados no
ofício. Eles tinham outras atribuições, tais como o controle dos preços, do
tratamento dos aprendizes e dos criados, etc. Eles possuíam uma primeira
jurisdição para julgar os delitos profissionais. A vida cotidiana das
comunidades de ofícios era regulada por seus costumes. A primeira redação
importante desses regulamentos orais foi feita por pedido de São Luís para os
ofícios parisienses. Étienne Boileau, Preboste dos Comerciantes, foi
encarregado de coletar os estatutos junto aos membros dos ofícios. Eles foram
compilados no que hoje em dia chamamos O Livro dos Ofícios, uma fonte
fundamental.
Citemos
algumas corporações juramentadas grandes ou poderosas na Paris do século XIII:
os padeiros [talemeniers], os ourives, o comércio das águas (fluvial), a
tapeçaria (ofício poderoso em toda a parte onde foi implementado), os
retroseiros [merciers], os açougueiros, etc.
Sobre a
especulação e o lucro fácil
Há
aqueles cujos frutos são os frutos da terra, disse Deus a Santa Catarina de
Sena. São os avaros e os gananciosos, que fazem como a toupeira, que se
alimenta de terra até à morte, e que, quando a morte vem, não podem
escapar-lhe. Em sua avareza, eles desprezam minha generosidade, pois vendem o
tempo ao seu próximo. Não é isto que fazem os usurários, que se tornaram
ladrões e cruéis para com seus próximos, por não se terem recordado da minha
misericórdia? Se tivessem dela se recordado, não seriam tão cruéis para consigo
mesmos e para com seus próximos. Eles usariam de piedade e de misericórdia:
para consigo mesmos, praticando a virtude, e para com seu próximo, servindo-o
caridosamente.
Sobre
o negócio
Comentando
o ensinamento de Santo Tomás, o padre Pègues escreve que “o negócio pelo
negócio tem algo de vergonhoso”, pois “ele favorece o amor pelo lucro, que não
conhece limites, mas tende à aquisição sem fim”.
Para
que ele se torne honesto e legítimo, é necessário um “ganho moderado buscado no
negócio [para] sustentar a própria casa, ou ainda [para] cuidar dos indigentes,
etc”.
É
isto que deveriam considerar os cristãos que se dedicam ao comércio, para não
cometerem pecado. Do ponto de vista da sociedade política, Santo Tomás afirma
ser “necessário que uma cidade perfeita se sirva dos comerciantes com
moderação”, para evitar que “numerosos vícios” e que “a ganância se enraízem no
coração dos cidadãos”.
Por
conseguinte, os cristãos dispõem, por um lado, de elementos que dizem respeito
à moral individual para determinar a medida da sua ação mercantil e, por outro
lado, de preceitos relativos à organização da sociedade política, dirigidos
particularmente aos governantes para assegurar o bem comum da multidão. Estes,
ademais, devem sempre controlar e limitar as atividades mercantis e suas
organizações, que não podem de maneira alguma se libertar de maneira legítima
da sociedade política.
Como
ilustração desses princípios, citemos o exemplo, relatado por Henri Pirenne, da
conversão de São Godrico de Finchale. Godrico era filho de um camponês de
Lincolnshire, e que enriqueceu por meio do grande comércio no final do século
XI e começo do século XII. O historiador especifica que “a busca pelo lucro
dirigia todas as suas ações e nele se reconhecia claramente esse famoso
espírito capitalista”, que “é impossível sustentar que Godrico tenha praticado
o negócio unicamente para atender às suas necessidades cotidianas” e que não se
servia do dinheiro ganho “unicamente para alimentar e ampliar seu comércio”.
Aí
encontramos um critério de reprovação do negócio já anunciado acima. Eis a
razão pela qual, tendo se tornado muito rico, mas tocado pela graça, Godrico
abandonou seus bens deixando-os aos necessitados e abraçou uma vida eremítica. Mesmo que nem
todos os homens que se entregavam a Deus na vida religiosa não fossem o que se
pode chamar de grandes pecadores antes de sua entrada na religião, parece que o
caso de São Godrico de Finchale não deixa margem a dúvidas. A radicalidade da
sua vocação, fecundada pela graça, está em relação direta com sua vida passada,
considerada vergonhosa pela cristandade.
A
usura, o empréstimo a juros e o empréstimo com penhor
A
doutrina católica ensina que todo empréstimo a juros e usurário é condenado
pelo magistério.
Recordemos igualmente que a autoridade política condenou, desde o império
carolíngio, a prática do empréstimo a juros sob a influência da Igreja. H.
Pirenne faz, sobre este ponto, uma reflexão que merece ser citada:
O
ensinamento da Igreja, escreve ele, [...] confunde sob o nome de usura todas as
formas de empréstimo a juros e os proíbe em princípio, de maneira indistinta;
as legislações seculares sancionam e a opinião ratifica essa condenação. É
preciso admitir, aliás, que essa atitude não deixou de ser benéfica. Ela
certamente teve como resultado impedir que a paixão pelo ganho se extravasasse
sem limites; ela protegeu em certa medida os pobres contra os ricos, os
devedores contra os seus credores. O flagelo das dívidas, que, na antiguidade
grega e na antiguidade romana, se abateu tão gravemente sobre o povo, foi
poupado à sociedade da Idade Média, e é possível crer que a Igreja contribuiu
muito para esse feliz resultado. O prestígio universal do qual ela desfrutava
agiu como um freio moral.
Sobre o
preço justo
Uma
vez que as trocas econômicas consistem na venda e na compra de produtos ou serviços,
elas são reguladas pela virtude da justiça comutativa. Para que a justiça não
seja lesada, é necessário que haja igualdade na troca. Como
estabelecer o preço justo de um produto ou de um serviço para assegurar esta
igualdade? Para responder a essa questão, esclareçamos que há no princípio do
justo preço dois aspectos a considerar.
Há
antes de tudo um aspecto objetivo, o mais importante, que diz respeito ao
produto em si mesmo e à sua capacidade de cumprir a missão para a qual foi
feito, ou seja, seu nível de “perfeição”, seu nível de qualidade. O valor
intrínseco do produto incorpora, de maneira bem evidente, o essencial do
trabalho realizado pelos homens sobre esse produto, e não somente no instante
da sua fabricação. O valor de uma riqueza leva em conta o trabalho das gerações
passadas. O valor de um cereal, por
exemplo, incorpora o trabalho dos ancestrais para obter uma terra
agrícola e transmiti-la nesta condição essencial para a produção. Se compramos
os cereais por um preço relativamente modesto, é porque, em verdade, há uma
parte do capital global da humanidade que pertence a todo o gênero humano. É
isso que Monsenhor Delassus chama o bem imóvel comum, designando o que aparece
hoje em dia como o produto de toda a espécie humana. Ele se serve dessa
demonstração para refutar o erro socialista, que alega que somente os
proprietários desfrutam do capital, a fim de exigir, por conseguinte, uma
partilha igualitária das riquezas. Para nós, ela
tem o interesse de mostrar que o justo preço de um produto leva em conta a
perícia e o trabalho das gerações passadas. No caso citado, cada um de nós
possui um pouco desse patrimônio da humanidade. O preço dos cereais diminui
como resultado disso, de acordo com o princípio da causalidade. O nível de
qualidade está, pois, em geral ligado ao nível do trabalho e da perícia. Não
podemos, no entanto, estabelecer uma regra de proporcionalidade entre esses
dois elementos e o justo preço do produto, pois o aspecto objetivo desse preço
leva igualmente em conta as tarefas contingentes efetuadas por aquele que vende
o produto. Aqui se trata das tarefas que não são em si mesmas necessárias à
fabricação (manutenção, armazenamento, etc.). Assim, no caso da venda de um
mesmo produto, de mesma qualidade, por conseguinte, em duas condições de
trabalho bem diferentes, é justo que o preço do produto incorpore essa
variação. Por exemplo, o vendedor pode expor seu produto na loja, situação em
que o cliente se desloca para comprá-lo. O produto tem o preço justo. O
vendedor pode vender esse mesmo produto por entrega em domicílio, o que
ocasiona um acréscimo de trabalho que justifica o aumento do preço do produto.
Em
segundo lugar, de acordo com Santo Tomás, há um aspecto subjetivo e acidental,
determinado pela necessidade do consumidor. É de se notar que, em uma economia
estável e ordenada – cristã, com mais forte razão – esse aspecto tende a se
apagar diante do primeiro. Ele não é mais que uma variável de ajuste que leva
em conta a necessidade dos compradores, e que incorpora a necessidade de uma
justa concorrência. Se assim não for, se o vendedor conferir maior mérito ao
aspecto subjetivo do mercado que ao caráter objetivo do produto, ele se tornará
culpado de uma especulação intolerável em uma sociedade cristã. Era esse o caso
de negociantes como Godrico de Finchale, que buscavam sistematicamente o local
de venda mais remunerador para um determinado produto. Esses procedimentos só
eram possíveis por conta da existência de poderosas organizações comerciais capazes, em
particular, de fretar navios para ir vender seus produtos longe, se necessário,
e isso em detrimento das economias locais. Esse tipo de comportamento se opõe
nitidamente à doutrina do justo preço, intimamente vinculada ao horror pela
especulação. Santo Tomás expõe assim as regras a serem respeitadas na
consideração do aspecto subjetivo do justo preço do produto:
A
compra e a venda podem, em certas circunstâncias, resultar no proveito de um e
no detrimento do outro; por exemplo, quando alguém tem grande necessidade de
uma coisa e o vendedor ficará lesado se não mais a tiver. Nesse caso, o justo
preço deverá ser estabelecido não somente de acordo com o valor da coisa
vendida, mas também de acordo com o prejuízo que o vendedor sofrerá com a
venda. Pode-se então vender uma coisa acima do seu valor em si mesma, embora
não seja vendida por um valor maior do que o que tem para o seu possuidor. Mas,
se o comprador extrair uma grande vantagem do que receber do vendedor, e se
este não sofrer prejuízo algum ao se desfazer da coisa, ele não deve vendê-la
acima do seu valor.
Não
há regra mais precisa para estabelecer um justo preço, e essa doutrina permite
uma margem natural de manobra, contanto que a justiça não seja lesada por um
comportamento especulativo. Ela recorda a nobreza da produção em relação à
função comercial, e o direito dos produtores a receberem uma justa remuneração
por seu trabalho. Terminemos por esta advertência de Santo Tomás: “Vender mais
caro ou comprar mais barato do que a coisa vale é em si injusto e ilícito”.
Sobre a
livre concorrência
É
evidente que o jogo de uma justa concorrência é necessário a um só tempo para
os praticantes de um ofício, para estimular entre eles o ardor pelo trabalho, a
busca pela qualidade e pelo progresso, e para os consumidores, para protegê-los
contra os riscos de açambarcamento de mercados, que se traduzem inevitavelmente
por uma especulação sobre os preços. É geralmente isto que a livre concorrência
produz, ela que é o contrário de uma justa concorrência. Uma justa concorrência
é um meio utilizado por uma economia bem ordenada para chegar ao seu fim, que é
a independência das famílias. A livre concorrência é simultaneamente um dogma e
um meio revolucionário para permitir a uma economia liberal que esta enriqueça
de maneira infindável a classe financeira e seu braço armado, o marketing e
o comércio internacional. O resultado inevitável dessa organização liberal é a
lei do mais forte, jamais a lei do melhor. Os últimos decênios estão cheios de
ensinamentos nesse sentido. Permitiu-se por toda a parte, em detrimento de uma
justa concorrência, a instalação de grandes mercados. Todas, ou quase todas, as
economias locais foram destruídas, e, todas as vezes que a organização
capitalista permanece sozinha, o jogo da especulação vem mais manifestamente à
tona. Temos, por um lado, consumidores enganados acerca da qualidade dos
produtos e assaltados quanto ao valor destes, e, por outro lado, salários
empobrecidos, sempre em benefício do lucro cada vez maior de alguns. A resposta
a esse erro se encontra, assim como no caso da especulação, no justo preço e na
subordinação da economia às prescrições da moral cristã. É isso que, em
substância, ensina o papa na Quadragesimo Anno:
Não
podemos esperar do livre jogo da concorrência o advento de um regime econômico
bem ordenado. [...] É, portanto, absolutamente necessário recolocar a vida
econômica sob a lei de um princípio diretor justo e eficaz.
O
espírito do século XIII, espírito essencial das comunidades
Para
descrever o período medieval, Régine Pernoud rejeita a
distinção das três ordens (nobreza, clero e terceiro estado), no entanto tão
corrente. De acordo com ela, nada é mais falso que explicar a sociedade da
Idade Média por essa classificação. Embora descreva bastante bem o Antigo
Regime, ela não oferece mais que indicações secundárias sobre a repartição das
forças em uma organização medieval que em absoluto não era compartimentada.
Essa distinção nada ensina sobre “a estrutura em profundidade da sociedade”
medieval. Para compreendê-la, a historiadora afirma ser necessário estudar sua
organização familiar e sua organização feudal. O terceiro aspecto que nos
parece essencial abordar é a questão da impregnação do cristianismo na
sociedade.
O
espírito familiar; oficina e sociedade doméstica
Aí
tocamos em um elemento central para compreender o período medieval e o século
que nos interessa. A família era então considerada não como uma realidade
horizontal, mas como uma realidade vertical. A família era a linhagem. Eram os
ancestrais, e, sobretudo, os descendentes, pois o realismo da época fazia os
olhares se voltarem para o futuro, para os filhos. Era algo como se colocar
dentro do tempo de Deus, que perscruta a sequência das gerações.
Organização
em famílias nucleares, ou famílias consuetudinárias
A
concepção medieval da família se opõe à concepção antiga, na qual só o homem
contava, uma vez que o paterfamilias tinha, na vida privada, direito de vida e
morte sobre seus filhos. Na Idade Média, não era o homem que importava, mas a
linhagem. O chefe de família era uma espécie de administrador consciente dos
seus deveres. Ele devia transmitir o que recebeu. Ele não estava lá para
desfrutar de maneira indevida, mas para garantir à sua família sua conservação
e seu progresso, particularmente em prol dos que eram frágeis. Esse
funcionamento “se fundava sobre uma base material: o bem de família”, diz R.
Pernoud. Ela
acrescenta que esse bem fundiário permanecia sendo sempre propriedade da
linhagem, propriedade intocável e inalienável. Ao morrer o pai, os costumes
instituíram em geral o direito de primogenitura, e mais raramente o direito do
mais novo (droit de juvégnerie) – ambos fundados em motivos naturais –,
que permitiam a transmissão integral do bem de família a um único herdeiro
designado pelo sangue.
Aí
encontramos, ainda que de maneira ligeiramente incompleta, a organização
descrita por Frédéric Le Play, a que foi posta à prova ao longo da história da
cristandade, e cujos frutos ele mesmo pôde ainda ver ao longo das suas
peregrinações: a família nuclear. Trata-se de
uma família no seio da qual o chefe transmite a um único herdeiro, designado
pelo costume, seu ofício e sua oficina, ou seu domínio. Trata-se de uma família
na qual três ou quatro gerações, os irmãos e irmãs celibatários, trabalham e
vivem. Trata-se de uma família que toma conta de seus inválidos e de seus
idosos. Aí se respeitavam as tradições ancestrais e, naturalmente, a religião
católica. A descrição de F. Le Play é mais completa, no sentido de que salienta
que o bem de família compreende o ofício do pai, elemento essencial do
patrimônio familiar, além do bem fundiário. Esta era uma realidade importante
no século XIII: o ofício era um patrimônio que se possuía.
Conformidade
dessa organização ao fim da economia
Encontramos,
pois, no século XIII, uma união profunda entre a oficina, em sentido amplo, e a
sociedade doméstica. Quando consideramos o fim da economia, que consiste na
independência material das famílias, e que o papel de uma empresa – sociedade
econômica – é participar da realização desse fim em prol das famílias que
intervêm em seu seio, a conclusão é inevitável: a família nuclear será tanto
mais sensível ao bem comum da empresa econômica quanto mais este coincidir com
sua própria independência material. F. Le Play não deixou de destacar este fato
luminoso em suas observações. Ele não hesita em afirmar que o que melhor
caracteriza uma constituição social são as relações entre o lar doméstico e a
oficina. Ele acrescenta:
A
felicidade e a infelicidade dos povos dependem da natureza dessas relações; e
estas últimas são elas mesmas regradas pelas ideias e pelos sentimentos que
impregnam os espíritos e os corações. Entre os povos prósperos, os lares e as
oficinas permanecem unidos por liames íntimos, durante uma longa sequência de
gerações. Entre os povos doentes, esses liames não existem mais; e, quando são
reatados pelo acordo espontâneo das partes interessadas, são logo destruídos
pela tirania dos governantes.
A
união entre família e oficina é profundamente natural e profundamente cristã. A
propósito, a transmissão integral do ofício e do bem fundiário a um único
herdeiro não é o único argumento em favor dessa união, mesmo que essa
transmissão baste por si só a nos convencer, pelos benefícios de estabilidade e
de unidade econômica que ela suscita. Recordemos que o fim da sociedade
política é a unidade na paz, que dispõe os homens à contemplação. Ora, a
economia é, em relação à sociedade política, como um meio ordenado a esse fim.
Não nos surpreendermos, pois, em constatar que, no século XIII, século de
civilização cristã, a economia fosse organizada de maneira a produzir frutos de
unidade e de estabilidade. Mas isso não é tudo: há outros benefícios extraídos
dessa união necessária entre famílias e oficinas, e é isso que iremos
descobrir.
O
espírito familiar nas comunidades de ofícios
Consideremos
inicialmente a participação da esposa no trabalho do seu marido. Isso era uma
constante no século XIII, em todos os degraus da hierarquia social. Trata-se de
algo natural, que favorece o bom entendimento dentro do lar e a busca pelo bem
comum. Quando um senhor tinha de se ausentar do seu domínio, não era raro ver
sua esposa a dirigi-lo. R. Pernoud relata o exemplo da condessa Blanche, em
Champagne, que enviuvou no início do século XIII, e que “administrava seu
domínio como teria feito seu esposo, e [...] até mesmo fundou uma nova cidade...”.
Nas
comunidades de ofícios, o espírito familiar estava presente em mais de um
aspecto, notadamente através dessa cooperação entre os esposos.
Citemos
dois exemplos: o primeiro diz respeito à regulamentação do número de
aprendizes. O costume bastante generalizado nas corporações juramentadas do
século XIII era aceitar apenas um aprendiz de fora na oficina, além dos
aprendizes privados (membros da família, notadamente filhos do mestre). A
fórmula em uso era a seguinte: “O mestre não pode ter mais que um aprendiz,
excetuando-se seus filhos ou os da sua mulher, nascidos de matrimônio
verdadeiro”.
Mas
é surpreendente notar que, a essa regra habitual, se acrescentava uma outra
relatada por Lespinasse, concernente
ao trabalho da esposa: quando esta auxiliava seu marido em sua atividade
profissional, eles podiam tomar dois aprendizes de fora, o que constituía um
verdadeiro privilégio e um incentivo ao trabalho familiar.
O
outro exemplo, que não ilustra a participação da esposa no trabalho do seu marido,
mas o respeito pela hierarquia familiar, diz respeito às comunidades de
mulheres, pois alguns ofícios eram mistos e outros eram inteiramente femininos.
Estes últimos eram mantidos por mulheres probas, como as comunidades
masculinas, dirigidas por homens probos. A única diferença é que aí se
encontrava a aplicação de um princípio geral de família cristã proclamado por
São Paulo: “Assim como a Igreja está sujeita a Cristo, assim o estejam também
as mulheres a seus maridos em tudo” (Ef 5, 24).
Por
conseguinte, “nos ofícios exercidos por mulheres, como as fiadoras de seda e as
tecelãs, as mestras juramentadas deviam ser assistidas pelo marido de uma
delas”.
Eis
aí, pois, dois exemplos do espírito familiar no seio das comunidades de ofícios
concernentes ao sustento mútuo dos esposos.
Ademais,
o ofício sempre foi, na cristandade, um elemento de educação dos filhos. Esta
era uma realidade bem estabelecida no século XIII, e os estatutos de E. Boileau
o confirmam de maneira nítida. Retornemos um pouco sobre a questão dos
aprendizes privados. Recordamos acima a fórmula geralmente em uso para exprimir
os costumes dos ofícios acerca deste ponto. Todos os filhos de mestres podiam
ser aprendizes, bem como os membros da sua família e da família da esposa (sobrinhos
e sobrinhas). Além da transmissão de um patrimônio familiar, aí encontramos um
incentivo ao trabalho familiar e à educação dos filhos pelo ofício, e isto no
próprio seio dos regulamentos. E o incentivo era premente. Os filhos dos
mestres eram beneficiados com notáveis privilégios. O aprendiz de fora pagava
por sua entrada na comunidade e por seu aprendizado, cuja duração era
rigorosamente regulamentada. Se seus pais não pudessem pagar essa indenização
ao mestre antes da entrada no aprendizado, a duração era prorrogada por dois
anos em média, para que o mestre se beneficiasse de um justo retorno em relação
ao investimento inicial. A contrario, o aprendizado dos filhos dos
mestres era gratuito e sem duração legal. Ao mesmo tempo, a compra do ofício,
sobre o qual teremos ocasião de retornar, não lhes dizia respeito, uma vez que
o ofício lhes era transmitido, tal como um patrimônio familiar. Acerca da
educação dos filhos, concluamos por este comentário de Lespinasse:
O
aprendiz pagava, adicionalmente, um direito de entrada, em benefício da caixa
da Confraria, nos ofícios onde existia uma Confraria. Notamos que o acesso a um
ofício só se obtinha, para quem era de fora, à força de sacrifícios, e que
vantagens consideráveis eram reservadas ao filho que continuava o ofício de seu
pai.
O
espírito familiar não era confinado ao círculo restrito da sociedade doméstica.
Ou melhor, todos facilmente consideravam que o círculo familiar devia se
ampliar a critério da vida econômica. Assim, os estatutos especificavam que o
mestre era obrigado a se ocupar de seus aprendizes como de seus filhos e fazer o
mesmo com seus criados. Este era um dos tópicos de controle dos jurados em
relação os mestres: verificar se os aprendizes e criados estavam sendo bem
tratados. De outra parte, a conduta dos criados era supervisionada. Os mestres
tinham a obrigação de denunciar eventuais escândalos à autoridade pública
competente, atitude no fundo bem paternal, que, nem sempre conseguindo corrigir
o libertino, protegia os outros criados do seu exemplo corruptor.
Enfim,
terminemos este parágrafo especificando que a comunidade de ofícios era ela
mesma uma grande família dos que exerciam o ofício. Esse espírito familiar é
uma das causas da busca permanente do bem comum do corpo e da caridade exercida
em seu seio
O
feudalismo, o espírito consuetudinário
O
feudalismo é o segundo elemento que caracterizava em profundidade o século XIII
em sua constituição social. O espírito consuetudinário era um dos principais
traços políticos da organização feudal. No século XIII, tendo o rei recuperado
sua posição em relação aos feudatários, o direito consuetudinário, contido
dentro dos justos limites de uma subordinação à autoridade real, permitia uma
aplicação exemplar do princípio de subsidiariedade, da qual puderam desfrutar
as comunidades de ofícios. Foi nesse direito que elas encontraram sua riqueza e
seu desabrochar. Examinemos tudo isso.
A
essência do vínculo feudal
Para bem
compreender a essência do vínculo feudal, R. Pernoud compara nossa mentalidade
econômica com a dos nossos ancestrais da Idade Média. Se hoje em dia, explica
ela, as relações econômicas de homem a homem se fundam sobre o trabalho
assalariado, nada disso acontecia na Idade Média, onde as noções de trabalho
assalariado e de dinheiro eram quase ausentes. O que regia os vínculos de homem
a homem era a fidelidade, de uma parte, e a proteção, da outra. Por
conseguinte, uma pessoa não comprometia seu tempo, mas sua fidelidade, e não
recebia salário, mas subsistência e proteção. Eis a essência do vínculo feudal. Esse vínculo
pessoal implicava o reconhecimento de uma hierarquia social. Ele se encontrava
em toda a parte na sociedade, notadamente na organização política. Por toda a
parte sentimentos de fidelidade, por um lado, e deveres de proteção, pelo
outro, alimentavam as relações políticas e sociais.
Durante
mais de cinco séculos, escreve a historiadora, a fidelidade e a honra
permaneceram sendo a base essencial, a armadura das relações sociais. Quando no
lugar delas entrou o princípio de autoridade, no século XVI, e sobretudo no
XVII, não se pode alegar que a sociedade tenha ganhado; seja como for, a
nobreza, já enfraquecida por outras razões, perdeu aí sua reserva moral
essencial.
O
espírito feudal nas comunidades de ofícios
É em mais
de um aspecto que encontraremos o espírito feudal na organização dos ofícios no
século XIII.
Notemos
antes de tudo que a corporação juramentada era ela mesma considerada como uma
pessoa feudal. Por quê? A primeira razão se encontra no nome “juramentada”,
que, aliás, não é sistemático, mas que exprime muito bem o espírito do século
XIII. É preciso recordar aqui que o termo “corporação” veio à luz no século
XVIII, pela boca ou pelos escritos dos liberais que abominavam as comunidades
de ofícios.
Aliás, este termo designava normalmente, no século XVIII, as grandes empresas
estatais, tais como a Companhia das Índias. Ele é, portanto, bem mal escolhido
para defender a legitimidade das comunidades de ofícios, em uma justa aplicação
do princípio de subsidiariedade. Uma das forças do liberalismo é introduzir a
ambiguidade dos termos e recusar-se a defini-los. Seja como for, no século
XIII, são as expressões “comunidade de ofícios”, “corpos de ofícios” ou a
palavra “juramentada” que se deviam
guardar. Havia então dois tipos de organizações de ofícios: os ofícios ditos
juramentados e os ofícios livres. Os primeiros eram sociedades de artesãos ou
de pequenos comerciantes vinculados por um juramento, sociedades dotadas de um
monopólio. Elas constituíam verdadeiras pequenas repúblicas dentro da cidade.
Os segundos eram ofícios regulados pelos poderes públicos, na falta de
organizações naturalmente constituídas. Tratava-se, de acordo com Coornaert, de
um mundo em tutela. Na verdade, aí encontramos uma sadia aplicação do princípio
de subsidiariedade. Os que nos interessam são os ofícios organizados, os
juramentados. Contrariamente aos ofícios livres, eram pessoas feudais: elas
podiam, por exemplo, possuir e comparecer em juízo. Diante da autoridade
política, elas eram constantemente legitimadas enquanto tais pelo juramento de
seus mestres juramentados. Com efeito, estes últimos, por ocasião de sua
investidura, sempre prestavam juramento à autoridade. Em Paris, no que dependia
diretamente do domínio real, os juramentados prometiam ao preboste, com as mãos
sobre os Santos Evangelhos ou sobre relíquias dos santos, cumprir sua tarefa
com lealdade.
Havia igualmente muitos casos em que a comunidade inteira prestava juramento ao
senhor ou à comuna. Coornaert relata o exemplo, em Bourges, dos açougueiros do
rei, “que prestavam anualmente fidelidade e homenagem por suas bancadas e que
apresentavam um responsável pela mão morta que os representasse a serviço do
senhor rei”.
Esses
juramentos legitimavam a existência da comunidade feudal. Em troca, a
[corporação] juramentada recebia a proteção do seu senhor ou da comuna,
proteção que se caracterizava pelo monopólio territorial, verdadeiro privilégio
e sinal dos tempos. Voltaremos a falar desse monopólio que conferia um direito
exclusivo de produção, em um território determinado, à comunidade de ofícios.
Na relação entre autoridade política e [corporação] juramentada, havia, pois,
um vínculo feudal caracterizado, por um lado, pela fidelidade, cuja expressão
era o juramento, e, por outro, pela proteção, que se manifestava pela outorga
de um privilégio, o monopólio territorial.
Havia,
em seguida, no seio das comunidades, hábitos e regulamentos que denunciavam
incontestavelmente o espírito feudal. Por exemplo, o que era verdadeiro para a
[corporação] juramentada considerada em seu conjunto como pessoa feudal era
verdadeiro para cada operário que lá exercia sua atividade. Para entrar na
comunidade, o aprendiz deveria prestar juramento à comunidade, juramento
renovado no final do aprendizado, tanto para os criados como para os mestres.
Em troca dessa fidelidade à comunidade de ofícios, cada um receberia a proteção
correspondente ao seu estatuto. Assim, para o mestre, o monopólio territorial
de sua [corporação] juramentada se traduziria em monopólio pessoal, associado
ao direito de participar do governo do ofício. Tanto para o criado quanto para
o aprendiz, a proteção esperada da parte da comunidade se faria bem presente
nos regulamentos. Vimos acima que os mestres deviam tratar seus aprendizes como
seus filhos. Lespinasse anota em seu comentário ao Livro dos Ofícios
que, para que o contrato de aprendizagem fosse aceito,
Os
jurados deviam [...] colher as mais minuciosas informações sobre as capacidades
do mestre e sobre sua posição financeira. Se ele não lhes parecesse
suficientemente capaz, eles o ignoravam [...]. Os jurados deviam ainda se
assegurar de que houvesse ao menos um operário trabalhando na oficina, na
qualidade de criado, de maneira que o aprendiz jamais permanecesse sozinho no
trabalho, quando o mestre se ausentasse para atender aos seus negócios.
Enfim,
conhecemos igualmente toda a complacência dos estatutos para com a juventude
dos aprendizes, notadamente como os protegiam mesmo em caso de fuga, uma vez
que, em geral, os mestres deviam esperá-los por um ano e um dia!.
Toda
a proteção conferida aos operários se resume pela noção de “propriedade do
ofício”. Quando concluía seu aprendizado, o mestre ou criado era proprietário
do seu ofício. Ele assim adquiria garantias de trabalho da parte da comunidade,
de segurança e de assistência, em caso de necessidade. Uma tal organização
econômica se opõe radicalmente ao liberalismo, que gera a condição proletária.
Aqui, o operário não podia ser um proletário, pois era proprietário do seu
ofício. Eis, portanto, por meio de alguns exemplos, o espírito feudal contido
nas comunidades de ofícios: fidelidade de uma parte, proteção da outra.
O
costume nas comunidades de ofícios
Entre
direito consuetudinário e direito romano, há um abismo de sabedoria e de
justiça. O respeito pelo princípio de subsidiariedade pelo governo da sociedade
política – respeito que decorre da justiça, como declara Pio XI – produz um
direito consuetudinário, ao passo que o desprezo por esse princípio, fruto de
uma cultura política autoritária, gera a concentração administrativa do poder:
trata-se do Direito romano, que não deve ser confundido com o Direito Canônico.
O
respeito pelo princípio de subsidiariedade por um rei como São Luís produziu
naturalmente, em todos os graus da hierarquia social, um direito
consuetudinário. As províncias e as comunas eram consuetudinárias, as famílias
eram consuetudinárias, e as comunidades de ofícios também o eram. No caso das
[corporações] juramentadas parisienses, o primeiro elemento que no-lo assinala
é o próprio procedimento de São Luís. O rei mandou redigir os estatutos dos
ofícios, preocupando-se, por um lado, em afirmar seus direitos, mas também e
sobretudo em regular as relações entre pessoas de ofícios diferentes, entre
pessoas que exerciam ofícios num mesmo corpo, etc. A quem pediu ele essa
redação? Não a legistas, mas aos próprios operários dos ofícios, os únicos que
possuíam as competências exigidas. Os estatutos eram, portanto, os costumes
escritos dos ofícios parisienses do século XIII, aprovados pelo rei. Eles
levavam as marcas infalíveis do espírito consuetudinário, que são a brevidade e
a flexibilidade. Essa brevidade, estranha para os nossos espíritos acostumados
ao “legislacionismo”, é o reflexo
das liberdades concedidas pela autoridade real. O que um regime estatista fixa
e congela na frieza de um papel burocrático interminável por seus detalhes
esterilizantes, o regime de São Luís lhe confere uma liberdade legítima de
expressão e de modulação. Ela se manifesta plenamente na brevidade e na
flexibilidade dos regulamentos. Quando falamos em flexibilidade, trata-se do
poder de adaptação às circunstâncias políticas e econômicas do momento, não dos
princípios da ordem social cristã. A alguns séculos de distância, encontramos o
mesmo espírito na regra ditada por Santo Agostinho, a respeito da qual o Padre
Petitot escreveu que “é indefinida o bastante e vaga o bastante para se
prestar, como uma matéria bem maleável, a múltiplas formas de vida religiosa”.
O
segundo ponto a destacar é uma consequência do sistema feudal. No século XIII,
as comunidades de ofícios eram submetidas ao senhor do local e dele recebiam
seu monopólio territorial, como vimos acima. Havia, portanto, comunidades de um
mesmo ofício cujos costumes variavam em função do local. Este era o resultado
de uma conjunção entre a formação natural de um corpo econômico e o respeito ao
princípio de subsidiariedade. Isto era necessário para conservar para as
comunidades seu espírito familiar, fonte da sua caridade e da sua fecundidade.
Era algo natural, em muitos casos, de um ponto de vista “profissional”. Com
grande frequência, em um artesanato, um mesmo ofício não se pratica da mesma
maneira em Paris, em Lille ou em Toulouse. Os
regulamentos relativos à qualidade diferem, portanto, de um lugar para outro.
No século XIII, a riqueza das tradições locais e a fecundidade das
[corporações] juramentadas encontram sua fonte em uma dimensão familiar do
corpo e em seu espírito consuetudinário, vale dizer, espontâneo e livre,
submetidos aos princípios da ordem social cristã.
Enfim,
o direito consuetudinário tem por efeito comprometer os homens com os caminhos
da responsabilidade. Ele exige de cada um, tal como um dever de justiça, que
participe do governo do corpo do qual ele é parte, na medida da sua condição e
das suas competências. No seio das comunidades de ofícios, os mestres, em
geral, e os jurados trabalhavam para construir o futuro do ofício. Eles se
sentiam solidários e responsáveis. Os mestres, quando eram escolhidos por seus
pares para tomar conta da comunidade, não tinham o direito de recusar esse oneroso
encargo. Os mandatos dos jurados eram, a propósito, bastante curtos, durando em
média um ano. Isto permitia uma rotatividade frequente dos fiscais e, desta
forma, fazer que todos os mestres dignos da função se interessassem pelo bem
comum do ofício.
A
cristandade
A
ordem social cristã e São Luís, rei justiceiro
O século
de São Luís permanece sendo, para nós, cristãos do século XX, e para quem quer
que se interesse pela civilização cristã, uma referência fundamental. A Igreja
nos propõe São Luís como exemplo por sua santidade pessoal, mas também pela
santidade do seu governo. São Luís foi o rei justiceiro. Isto não foi um acaso,
pois a justiça geral é a virtude exercida por um soberano para ordenar a
sociedade política ao seu fim. Ele foi,
portanto, justo em sua maneira de governar, notadamente porque respeitou o princípio
de subsidiariedade. Ele assim permitiu aos corpos intermediários que
florescessem em um verdadeiro regime de liberdades. Foi esse regime que
produziu as maravilhas que conhecemos, e, entre elas, uma organização econômica
excepcional, cujo elogio foi feito nos seguintes termos por H. Pirenne:
A
economia urbana é digna da arquitetura gótica, da qual é contemporânea. Ela
criou em todas as suas peças [...] uma legislação social mais completa que a de
qualquer outra época da história, aí compreendendo a nossa. Ao suprimir os
intermediários entre o comprador e o vendedor, ela assegurou aos burgueses o
benefício da vida a baixo custo, ela perseguiu sem piedade as fraudes, e
protegeu o operário contra a concorrência e a exploração.
Em
verdade, era a ordem social cristã que estava integralmente presente nas
comunidades de ofícios.
A
ordem social cristã nas comunidades de ofícios
Revelaremos
na parte seguinte como os princípios de uma economia cristã eram respeitados e
postos em ação. Vejamos, neste parágrafo, os outros elementos de uma fascinante
penetração do cristianismo nas comunidades de ofícios.
Seria
necessário inicialmente retornar à questão da origem das [corporações]
juramentadas, questão bastante complexa, à qual os historiadores não dão respostas
claras. O que é certo é que o mundo romano conheceu colégios de artesãos, e que
Bizâncio jamais deixou de tê-los, assim como o mundo muçulmano. No Ocidente,
vemos reaparecerem comunidades econômicas a partir do século IX, mas foi entre
os séculos XI e XIII que elas realmente se afirmaram, tendo a seu favor uma
situação política tornada estável. Há uma dificuldade em estabelecer um liame
com as comunidades romanas, por falta de fontes, por um lado, e certamente
também em razão de uma situação política movimentada desde a queda do império
romano, que não permitiu que esses corpos naturais se constituíssem
normalmente. Seja como for, o renascimento das nossas comunidades é
indissociável da penetração do cristianismo na sociedade medieval. É isto o que
faz a particularidade delas. A organização dos ofícios no século XIII é um
regime econômico cristão. A religião não veio se justapor sobre um regime
natural anterior, ela ocasionalmente o precedeu pela existência de uma
confraria, e sempre o acompanhou com sua graça. A ordem natural só foi
respeitada pela virtude do cristianismo. Esta é evidentemente uma lição para
nós na reflexão sobre o engajamento político.
Como,
portanto, se traduziram nos fatos as origens cristãs das comunidades de
ofícios? O primeiro elemento foi estrutural. Trata-se das confrarias, obras
religiosas de auxílio mútuo e de caridade, vinculadas às [corporações]
juramentadas. Devem-se dizer a respeito disso duas coisas. A primeira,
decorrente do regime consuetudinário, é que nem toda comunidade tinha
forçosamente uma estrutura que podia ser chamada de confraria. Isto, no
entanto, em nada prejudicava a qualidade do exercício da caridade entre os
praticantes do ofício. A segunda é que as fontes falam pouco das confrarias. Os
estatutos de E. Boileau são lacônicos sobre a questão. O termo “confraria” não
era, aliás, muito difundido. R. de Lespinasse nos explica que, no Livro dos
Ofícios, a confraria aparece unicamente “sob a forma de uma caixa de
auxílio”
alimentada pelos direitos de ingresso – aprendizagem e proficiência – e por
multas. Essa organização tinha diversos objetivos:
*a
preparação das festas religiosas, que eram bem numerosas, pois nessa época se
trabalhava em média quatro dias por semana. Elas eram sistematicamente feriados
obrigatórios, sob pena de multa e de confisco;
*
a construção e a manutenção de uma capela para o santo padroeiro;
*
a assistência aos funerais de um membro do ofício (trata-se aí certamente de
uma devoção profundamente cristã);
*
a assistência e a formação para as crianças pobres do ofício;
*
o sustento dos idosos do ofício – os cozinheiros dizem, por exemplo que “um
terço das multas arrecadadas [...] será atribuído ao sustento dos idosos pobres
pertencentes ao ofício, que tiverem decaído de posição em função dos negócios
ou da velhice;
*
a redistribuição dos confiscos por infração ou por trabalho defeituoso nos
ofícios alimentares aos prisioneiros do Châtelet ou aos pobres do Hôtel-Dieu;
*
a angariação dos benefícios do trabalho efetuado de maneira rotativa no domingo
por certas comunidades, tendo em vista uma obra pia – Os ourives organizavam
uma tal rotação de trabalho no domingo para oferecer “no dia da Páscoa um
jantar aos pobres do Hôtel-Dieu de Paris”.
Eis
aí uma lista das atribuições das confrarias, provavelmente não exaustiva, mas
que mostra de maneira aproximada com que espírito nossas comunidades eram
animadas.
O
segundo elemento, impressionante para nós, se encontra na redação dos
estatutos. Por toda a parte, Deus e a religião estavam presentes. Por toda a
parte, eles iluminavam os termos dos costumes com seus nomes ou seu espírito,
até ao ponto de introduzirem-se certos regulamentos que recordam os inícios das
homilias:
Em
nome da santa e indivisível Trindade, de Santa Maria, São Nicolau e de todos os
santos, nós, diletíssimos irmãos, prometemos todos a Nosso Senhor conservar o
vínculo da dileção. [...] Todos os que estão nesta caridade, Deus
onipotente os defenda [...] os livre de todo mal e confirme e toda boa obra, e
os conduza à vida eterna.
Por
toda a parte, as denominações de períodos, de dias, também de horas, tomam
emprestadas à Igreja seus hábitos e sua linguagem. Por exemplo, sucedia que os
regulamentos fossem modificados em função das épocas do ano. Este era
geralmente o caso para a duração do trabalho. O costume era trabalhar do nascer
ao pôr do sol. Por conseguinte, o ano era dividido em dois. Havia a estação dos
dias curtos, chamada charnage, pois a carne era permitida em certos dias
de penitência. Os regulamentos que mencionam a interrupção do trabalho
especificavam ordinariamente que ele ocorria nas vésperas. A estação dos dias
longos era chamada quaresma, e a interrupção do trabalho se fazia nas
completas. De maneira igualmente frequente, era uma grande festa, ou a festa de
um santo particularmente honrado, que assinalava ou uma mudança nos estatutos,
ou um ponto do regulamento a ser respeitado. Os padeiros assim pagavam o
costume (imposto comercial) no Natal, na Páscoa e no dia de São João. Havia,
portanto, na forma bem como no fundo, uma penetração absoluta do cristianismo
nas comunidades de ofícios.
Evidentemente,
escreve E. Coornaert, um tal regime pressupõe concepções do trabalho e da
própria existência diferentes das que dominam os espíritos hoje em dia: o
trabalho inerente à vida e esta ordenada à religião, ritmada pelo transcurso do
ano litúrgico.
Neste
parágrafo, pareceu-nos bastante útil terminar por um elemento capital do
regulamento, cuja vocação era de preservar a saúde do corpo de ofício. Não
somente a forma e o fundo eram inequivocamente católicos, mas, além disso, os
regulamentos não deixavam a esmo a conservação dessa catolicidade. Não havia
dúvidas de que o fim, mesmo puramente natural, do corpo não podia ser alcançado
sem um mínimo de virtudes morais e sem a graça de Deus. O ponto de regulamento
de que falamos diz respeito aos critérios de admissão nas comunidades. Por um
lado, não eram admitidos em um corpo os homens escandalosos – homens e mulheres
difamados, por exemplo – e os bastados. Por outro lado, bem rapidamente, o
pertencimento à burguesia foi exigido, tal como uma prova necessária de
moralidade. Com efeito, nessa época, o acesso à burguesia significava que a
pessoa tinha praticado duas virtudes maiores para a ordem social: a aplicação
ao trabalho e a temperança no uso do que esse esforço tinha permitido adquirir.
Enfim, eis aí um princípio repleto de ensinamentos para o combate antiliberal:
geralmente, a admissão dos hereges e dos judeus estava fora de questão, pois, diz E.
Coornaert, “parecia repugnar aos cristãos entrar em um tipo de sociedade com
eles”.
O
espírito das [corporações] juramentadas era, portanto, o espírito do século
XIII, um espírito familiar, feudal e consuetudinário. Foi este espírito a fonte
de tanta caridade, conforme vimos, e de uma imensa fecundidade que agora vamos
desvendar, em suas linhas gerais, por meio da aplicação dos princípios de uma
economia cristã.
A
organização dos ofícios sob o reinado de São Luís em face dos princípios
Já
recordamos na primeira parte algumas definições e alguns princípios gerais de
uma economia ordenada. Vejamos agora com quão grande pragmatismo e realismo os
praticantes dos ofícios se aplicavam a se conformar a esses mesmos princípios.
Uma
organização respeitosa dos fins do ofício e da economia
Havia
antes de tudo uma necessidade absoluta de respeitar o fim da economia e o fim
do ofício para permanecer dentro da ordem querida por Deus.
A
independência das famílias
Como, na
prática, se pode visar e assegurar a independência das famílias, o fim da
economia? Os praticantes dos ofícios não parecem ter tido dificuldades para
encontrar os meios adequados. Eis aí dois deles, para nos convencermos disso. O
primeiro desafia nitidamente nossos hábitos liberais. Antes de citá-lo,
recordemos que a independência das famílias não é um enriquecimento sem fim. A
necessidade material delas é limitada, o enriquecimento que permite adquirir a
independência o é igualmente. Respaldados por essa certeza, os operários do
século XIII tinham compreendido que era necessário limitar a expansão das
empresas. Eles o dispuseram em um certo número de regulamentos. Este era um
meio adequado para favorecer a instalação de novos mestres e fornecer assim a
numerosas famílias uma situação independente. A “política” econômica dessa
época consistia antes em desenvolver uma densa teia de pequenas empresas
familiares independentes que em favorecer a implantação de indústrias
poderosas, mas que sempre foram a causa de uma pauperização do mundo operário. Entre os
elementos utilizados para limitar o crescimento das empresas, encontravam-se: a
proibição de toda associação comercial, de que voltaremos a falar quando
tratarmos da concorrência, a proibição dos anúncios [publicitários], a
limitação dos pontos de venda e a limitação
da duração do trabalho, a qual já abordamos. Todos esses pontos dos estatutos
não tinham forçosamente por objetivo imediato e explícito a limitação da
expansão das empresas, mas podemos constatar que a aplicação de cada uma dessas
regras, que correspondiam ao respeito aos princípios da ordem social cristã,
acarretava imediatamente essa limitação.
O
segundo meio, corolário do primeiro, é o espírito com o qual se entrava em uma
comunidade no século XIII. Um jovem ou uma jovem que iniciava um aprendizado o
fazia com o objetivo de tornar-se mestre ao final da sua formação.
Subsequentemente, a evolução dos espíritos vinculada ao estatismo crescente, e os
enrijecimentos no tocante aos privilégios em todos os graus da hierarquia
social haviam de produzir uma mudança notável na sociedade. A proporção de
criados em relação aos mestres não cessará de crescer até à desaparição das
comunidades de ofícios. R. Pernoud escreve:
Os
criados só se tornarão numerosos a partir do século XVII, quando uma oligarquia
de ricos artesãos buscou cada vez mais reservar para si o acesso à posição de
mestre, o que esboçava a formação de um proletariado industrial.
Sob
o reinado de São Luís, só se tornavam criados, ao final de seu aprendizado, os operários
que não podiam superar as dificuldades da posição de mestre, tais como a compra
do ofício e o exame de probidade do candidato. Os outros estavam destinados a
ser mestres. Eles podiam oferecer às suas famílias essa independência material
e moral tão buscada por seus benefícios, sendo o mais importante deles o de
dispor as almas à contemplação de Deus.
A
utilidade do ofício
Vimos o
quanto a economia e os ofícios eram organizados tendo em vista a independência
das famílias. O outro fim dos ofícios é a utilidade social deles. Os operários
tinham uma profunda consciência dela, que se manifestava pela “honra do
ofício”. Por quê? A resposta é simples. Quando queremos prestar um serviço – o
ofício é um serviço, razão pela qual é útil – fazemo-lo bem. Propomos aqui
cinco ilustrações colhidas ao acaso na vida corrente das [corporações]
juramentadas a favor da excelência, da qualidade e da “lealdade” do produto.
Antes de tudo, para satisfazer a preocupação com a excelência, o operário
necessita adquirir uma sólida perícia. Era com esse objetivo que as durações do
aprendizado eram bastante longas aos nossos olhos, e naturalmente obrigatórias.
Elas eram em média de seis anos, alguns ofícios prolongavam-nas até dez ou doze anos.
Acrescentemos que a duração mencionada nos costumes era uma duração mínima.
Em
seguida, uma vez terminado o aprendizado, a pessoa podia se tornar mestre. As exigências
que cercavam essa consagração são o resultado da importância conferida ao
estatuto de mestre. Os mestres eram os arautos do ofício no cotidiano. Eles
deviam, portanto, dar provas de um certo número de competências que os
trefileiros de ferro assim resumiam: “Quem quer que queira trefilar pode
fazê-lo, contanto que aprenda o ofício e tenha os recursos necessários”. A fórmula é
lacônica, mas, para eles, era clara. O postulante devia apresentar garantias de
capacidades técnicas formalizadas por um juramento de fim de aprendizado e
confirmadas pelos mestres da comunidade. Mais tarde, ver-se-iam generalizar as
obras-primas, pouco correntes no século XIII. O candidato devia igualmente
provar que tinha uma situação econômica estável e era capaz de se instalar. O
mínimo exigido era a propriedade dos meios de produção e a compra do ofício
junto à autoridade política. Tudo isso pressupunha o exercício de certas
virtudes morais que davam garantias à comunidade de ofícios a respeito das
disposições do postulante. Se este tinha dado provas de coragem no trabalho e
de temperança em seus apetites, isto lhe havia permitido tornar-se proprietário
e constituir um capital que doravante pretendia fazer valer por conta própria,
em nome da sua família. Ele se apresentava como um homem responsável e reto,
que havia ascendido à burguesia por meio das suas virtudes. A comunidade
podia contar com ele, com sua preocupação pelo bem comum, e tinha a garantia de
que ele se empenharia em prol da honra do ofício. Enfim, acrescenta Lespinasse
em seu comentário, o futuro mestre “devia oferecer as mais seguras garantias de
probidade e de boa conduta, a fim de merecer sua futura qualificação de homem
probo [prud’homme]”, bem
consciente do serviço prestado à sociedade por seu ofício.
A
consciência da utilidade do ofício nas comunidades se manifestava também por
meio dos “controles de qualidade”, função principal dos jurados, que, em
determinados corpos, assumiam o nome explícito de “guardas do ofício”. Este era
um de seus principais papéis, pois os pontos regulamentares relativos à
fabricação e à escolha dos materiais eram bastante numerosos, e até mesmo, em
muitos casos, preponderantes. Se devemos hierarquizar os fins das [corporações]
juramentadas do século de São Luís, a honra do ofício – aprendizado e qualidade
– era a principal, juntamente com a regulamentação da concorrência. Os
estatutos dos padeiros da época eram bastante extensos, e nos permitem conceber
uma ideia desse papel de inspetores da fabricação e da venda, atribuído aos
jurados. Esse ofício, tal como um feudo, pertencia ao Padeiro-Mor do Rei, que
nomeava um mestre administrador e doze guardas eleitos – que símbolo para os
padeiros! – que juravam sobre os Evangelhos bem desempenhar o policiamento do
ofício. A principal função
deles, escreve Lespinasse, era de acompanhar o mestre dos padeiros na visita do
pão, que ocorria
uma vez por semana para controlar o tamanho, o preço e a qualidade dos
produtos.
Também
a “visão profissional” da organização econômica era um poderoso motor de
excelência e de qualidade. No século XIII, não havia a ideia absolutamente
imparável de produzir ao menor custo, como é o caso hoje em dia, à custa de uma
qualidade sistematicamente sacrificada. Os operários daquela época sabiam que
deviam fabricar o belo, o bom e o durável, produtos de qualidade: em suma, o
útil. Assim, o mestre não fazia o que chamamos pomposamente, nos dias de hoje,
de “terceirização”, para diminuir
os custos de produção. Em geral, ele
não terceirizava nem mesmo a mais mínima parte da sua fabricação, mesmo quando
seu produto exigia a reunião de diferentes habilidades. O operário desejava
dominar de maneira absoluta a qualidade da fabricação, e, portanto, do produto.
É a isto que podemos chamar cultura ou “visão profissional”, a qual podemos
encontrar nos costumes dos tecelães, que incluíam, no seio de suas comunidades,
criados tintureiros para tingir seus tecidos em suas próprias oficinas. Lespinasse
especifica que “os regulamentos exigiam que o objeto fosse fabricado e vendido
pelo mesmo operário [...]. A única exceção a isso eram os víveres, os quais
necessariamente deviam ser vendidos e revendidos”. Donde a
intervenção importante dos pequenos comerciantes [regrattiers]
parisienses do século XIII. É essa cultura que explica a classificação dos
ofícios por objetos fabricados: assim descobrimos, não sem nos espantarmos, que
os batedores de latão não faziam parte da mesma comunidade que os batedores de
ouro, pois o metal trabalhado era diferente, e, portanto, a habilidade é diferente.
Havia igualmente quatro [corporações] juramentadas para os fabricantes de
terços, em função do material utilizado. Em tudo isso, o que se visava eram
sempre a excelência e a alta qualidade dos produtos para satisfazer os
consumidores.
Terminemos
de mostrar até que ponto essa preocupação animava os praticantes dos ofícios,
por duas ilustrações que, no fundo, são convergentes. A maior parte dos ofícios
proibia o trabalho noturno, não em virtude de considerações sociais, mas porque
o trabalho noturno corria o risco de ser mau, em razão da luz fraca. O risco de
fraude e de falsificação era igualmente invocado para impedi-lo. É por isso que
os operários deviam trabalhar de dia, à vista de todos. O mesmo motivo impeliu
os operários a sempre lutar contra a venda ambulante, em função dos riscos de
fraudes acerca da qualidade. Assim,
compreendemos agora, por meio desses poucos exemplos, que a lealdade do produto
e a honra do ofício eram os reflexos, nos operários, da viva consciência da
utilidade do seu ofício.
Uma
organização respeitadora do princípio de subsidiariedade
Já
dissemos o quanto São Luís e, a seu exemplo, os grandes senhores feudais,
leigos e eclesiásticos, respeitavam o princípio de subsidiariedade, notadamente
em relação aos corpos intermediários econômicos. Vejamos agora com qual
aplicação as próprias comunidades consideravam esse princípio no tocante aos
seus membros, e, em seguida, em relação à autoridade política que os governava.
Em
relação aos seus membros
Santo
Tomás ensina que a monarquia é o melhor regime, pois o que é uno é mais apto a
proporcionar a unidade na paz à multidão do que aquilo que é composto (a
aristocracia ou a república). Ele
acrescenta, todavia, que é necessário eliminar da monarquia seu possível desvio
tirânico.
É necessário, portanto, um regime temperado por repúblicas ou aristocracias
locais. Porventura as comunidades de ofício correspondiam a elas? Para o
governo dos assuntos econômicos, elas eram efetivamente o que podemos chamar
pequenas repúblicas locais. Elas eram corpos governados por uma certa multidão.
A multidão em questão era em geral formada pelo conjunto dos mestres, julgados
mais capazes que os criados de escolher os que teriam o encargo de exercer o
poder na comunidade e de dirigi-la rumo ao seu fim. Ocorria, no entanto, que os
criados podiam nomear alguns jurados saídos das suas fileiras, mas isto era
algo bastante excepcional. O que é certo é que as pessoas julgadas competentes
pelos costumes escolhiam seus jurados, e, como se sabia que a autoridade vem de
Deus, a escolha era ratificada pela autoridade política (para muitos dos
ofícios parisienses, era o preboste dos mercadores, Étienne Boileau, que
confirmava as eleições e conferia as investiduras). Havia, portanto, da parte
do corpo, o respeito ao princípio de subsidiariedade em relação aos seus
membros. Estes participavam do governo da [corporação] juramentada em função
das suas competências. Naturalmente se evitava o perigo da soberania popular e
da sua consequência, o sufrágio universal.
Em
relação à autoridade política
Para um
corpo intermediário, o princípio de subsidiariedade se considera nos dois
sentidos. Ele é antes de tudo considerado em relação aos seus membros ou aos
corpos que lhe são inferiores, o que acabamos de fazer. Em seguida, é
necessário que o corpo em questão respeite a autoridade que confirma o direito
natural que ele tem de se governar a si mesmo. No caso em tela, no século XIII,
as comunidades de ofícios eram sempre submetidas a uma autoridade política
local: um senhor leigo, um senhor eclesiástico ou uma comuna, por exemplo.
Diversos elementos frequentes nos estatutos parisienses nos mostram que essa
submissão não era uma palavra vazia. O primeiro deles, ao qual não
retornaremos, pois já o abordamos, era o juramento, notadamente o dos jurados,
em troca do qual ocorriam suas investiduras. Recordemos, todavia, que, no
século XIII, ser perjuro era uma das piores degradações. Esse juramento,
portanto, não era feito de maneira leviana. As funções dos jurados não se
resumiam, a propósito, aos controles dos praticantes dos ofícios. Eles eram
também encarregados, em nome da autoridade política, de fazer respeitar as leis
civis na comunidade. Eles possuíam, para essa finalidade, uma certa jurisdição.
Eles administravam a justiça em relação aos delitos profissionais, sancionavam,
aplicavam multas e confiscavam as mercadorias defeituosas. Para as faltas mais
graves, eles tinham o dever de denunciar os crimes à autoridade política, sinal
da sua submissão e da sua preocupação com o bem comum.
Dois
outros elementos, que jamais alegraram a ninguém, provam o respeito dos
praticantes dos ofícios em relação à autoridade política: eles pagavam impostos
comerciais e faziam o serviço de vigilância. De maneira mais precisa, somente
os mestres pagavam esses impostos, como chefes de famílias. Igualmente, somente
eles eram obrigados a vigiar rotativamente as muralhas das suas cidades durante
a noite, como todo burguês era obrigado a fazer. Eles participavam assim da
proteção da sua pátria. Esses dois pontos estavam presentes na maior parte dos
regulamentos parisienses e as fórmulas não mentem quanto à submissão que tinham
em relação à autoridade: “Os oleiros devem ao rei o serviço de vigia”, diziam os
costumes desse ofício.
Os
praticantes dos ofícios e a burguesia do século XIII, em seu conjunto, não eram
revolucionários. H. Pirenne explica que, no grande movimento comunal de que
foram os iniciadores, e que teve sua consagração nos séculos XII e XIII, eles
não buscaram derrubar a ordem estabelecida. Eles afirmaram o direito natural
recordado por Pio XI de governar seus próprios corpos econômicos, bem como o
primeiro corpo intermediário político. Era um movimento irresistível e natural.
Eles estiveram na origem das instituições urbanas que conhecemos no século
XIII, fundadas sobre a divisão dos ofícios. Eles lhes
eram, portanto, evidentemente submissos. Isto é tanto mais verdadeiro porque as
comunidades de ofícios constituíam um viveiro para os conselhos municipais.
Lespinasse escreve na introdução do seu comentário que o comércio das águas era
uma poderosa [corporação] juramentada no seio da qual “se recrutou o échevinage
parisiense”. Constatamos com evidência que as comunidades ocupavam seu
lugar próprio na sociedade.
Uma
organização respeitadora dos princípios da economia cristã
Começamos
a mostrar o essencial, assegurando-nos de que as comunidades de ofícios
respeitavam os fins da economia e do ofício. Quando os objetivos buscados são
claramente definidos e estão em conformidade com a ordem querida por Deus, os
meios empregados para alcançá-los serão justos de maneira perfeitamente
natural. Na busca de um fim, há lógicamente a tendência a utilizar os meios em
conformidade com esse fim. Se o fim for bom e sem ambiguidade para os que o têm
em vista, os meios serão naturalmente bons. Somente os ativistas têm uma
propensão natural a negligenciar a escolha dos métodos, contanto que o fim seja
alcançado (devemos ainda especificar que esse fim é com frequência
grosseiramente definido nos espíritos deles). Nesta última parte, constataremos
que os praticantes dos ofícios respeitavam, na prática, os princípios de uma
economia cristã, sabendo que esses princípios constituem as regras de ação
ditadas pela finalidade da economia.
Uma
organização que combatia a especulação e o lucro fácil
A
sociedade medieval se dedicava de corpo e alma quando se tratava de combater a
especulação. E. Coornaert recorda quanto os cristãos eram hostis a todo ganho
que não era fruto de um trabalho pessoal, o quanto o trabalho era então
concebido como condição normal e permanente da existência. Não nos
surpreenderemos, portanto, ao ver que as comunidades de ofícios não permaneciam
neutras diante dos comportamentos especulativos. Elas os combatiam
positivamente. Apresentaremos aqui algumas aplicações dos costumes que vão
nesse sentido edificante. Elas são basicamente tão desconcertantes quanto a
limitação da expansão das empresas para nós, que estamos habituados a ouvir
falar unicamente do crescimento necessário destas últimas. É preciso,
novamente, fazer um esforço violento e recordar às nossas memórias que o fim da
economia não é o enriquecimento, mas a independência material das famílias. A
nuance é considerável, pois fixa limites. É por isso que uma economia ordenada
é uma economia mortificada. Trata-se de mortificar nossa natureza decaída, que
não cessa de buscar riquezas. Assim, a especulação, que é um enriquecimento
artificial, era combatida cotidianamente pelo “direito de partilha”. Tratava-se
de um ponto de regulamento bastante difundido, que conferia aos praticantes de
ofícios presentes por ocasião de um contrato o direito de obter a partilha das
matérias primas negociadas por um dentre eles com um fornecedor, pelo mesmo
custo. Os fabricantes de selas resumem esse uso nestas palavras:
Se
um fabricante de selas comprar alguma coisa própria do seu ofício, e se alguém
do mesmo ofício chegar no momento em que o negócio estiver sendo concluído por
um aperto de mão, ou pela destinação do dinheiro a Deus, aquele que estiver
chegando pode tomar a metade, ou a quantidade de que necessite.
O
que se buscava era a equidade no ponto de partida, e que nenhum operário
pudesse, por meio de um comportamento especulativo, tirar proveito de uma
compra vantajosa em detrimento dos outros. Lutava-se contra todo risco de açambarcamento.
Em parte pelas mesmas razões, as compras de mercadorias se faziam publicamente,
em locais bem estabelecidos. Havia aí
também a afirmação da superioridade da produção sobre o comércio. Era a perícia
de um operário que devia permitir-lhe se distinguir da massa, não suas
capacidades de negociar.
Os
praticantes dos ofícios proibiam igualmente os mercados futuros, vale dizer, as
encomendas feitas de antemão. Era proibido acumular estoques e fazer acordos em
segredo com um fornecedor. As compras eram feitas um dia de cada vez, em locais
como os mercados, em função de uma necessidade real e cotidiana. Evitava-se,
por essa proibição, o açambarcamento de mercadorias ou produtos por operários
ricos que poderiam especular à vontade com o preço das mercadorias. É
exatamente isso que diziam os pequenos comerciantes: “Os ricos revenderiam
tudo, tão caro quanto quisessem”.
Terminemos
enfim este parágrafo com um ponto que não figura nos regulamentos, mas que era
uma realidade social no século XIII. Trata-se da proximidade entre mestres,
criados e aprendizes. Todas essas pessoas eram, aliás, agrupadas sob o vocábulo
“operários”, sem distinção fundada sobre a posição hierárquica de uns e outros,
pois o mestre jamais se considerava como um homem de negócios. Ele era um
artesão, e seu valor se mensurava por sua perícia, não por atividades
especulativas. Ele trabalhava na oficina ao lado de seus criados e de seus aprendizes,
fato que, por sinal, favorecia o bom entendimento entre os operários. Notemos
que a evolução da moral econômica, a passagem a uma economia liberal na qual se
enfrentam capitalismo e socialismo, gerou uma evolução no sentido das palavras.
“Operário” passou a designar doravante uma classe econômica inferior de pessoas
consideradas como puras executoras. Os mestres, que outrora possuíam a mestria,
garantia de suas competências técnicas, se tornaram os patrões. Eles passaram
cada vez mais a ser gestores e financistas de comportamento especulativo, e
isso até mesmo nas pequenas empresas. Guardemos bem, portanto, o espírito que
animava essas oficinas: um espírito de união e de trabalho coletivo, onde o
chefe dava o exemplo.
Uma
organização que combatia a usura
A
proibição da usura figurava entre as leis do reino, conforme recordamos acima.
As comunidades de ofícios não tinham, portanto, de insistir num princípio desde
então bem estabelecido. Encontramos, no entanto, aqui e ali, nos costumes,
elementos concernentes à prática do empréstimo a juros e do empréstimo com
penhor. Os estatutos das tecelãs de seda, por exemplo, proibiam às mestras que
penhorassem ou vendessem a judeus ou a lombardos a seda que a elas havia sido
confiada. O comentador do Livro dos Ofícios especifica, à margem desses
regulamentos, que:
Os
judeus e os lombardos eram, em sua maioria, mercadores italianos que
introduziram na França a prática do empréstimo com penhor. Vemos então, escreve
ele, quão grande era a culpabilidade desses operários que trocavam a matéria
prima que lhes havia sido confiava por outras matérias de pior qualidade.
É
verdade que os regulamentos visavam, num primeiro momento, eliminar todo
comportamento incorreto das mestras para com seus clientes. Além disso, eles
condenavam, ao menos implicitamente, a prática do empréstimo com penhor.
Uma
organização que defendia o princípio do justo preço
Já
citamos Santo Tomás de Aquino ensinando que é em si injusto vender mais caro ou
comprar mais barato que o valor real da coisa. Não nos enganemos, a defesa do
justo preço em uma situação de concorrência basicamente normal consiste com
grande frequência em impor aos profissionais um preço mínimo de venda para um
produto definido. Somos obrigados a abordar a questão da concorrência de
maneira prematura, pois o princípio do justo preço lhe é indissociavelmente
vinculado. Terminaremos, no entanto, a ilustração deste tópico no parágrafo
seguinte. Assim, em uma economia onde a concorrência é regulada, o papel dos
agentes econômicos – no caso em tela, o papel das comunidades de ofícios – é de
velar para que os operários não fiquem tentados a violar as regras
estabelecidas nesse sentido. No século XIII, a atividade de um mestre em
relação aos outros mestres do mesmo ofício estava perfeitamente contida dentro
dos limites de uma justa concorrência. Para um operário pouco escrupuloso, a
tentação era infringir as leis que estabeleciam essas relações. Nesse caso, a
tendência seria a de baixar os preços para atrair os clientes dos vizinhos.
Ora, conforme dissemos, isso é injusto. O operário que age assim é injusto para
consigo mesmo, e, o mais grave, é injusto para com a comunidade inteira. Os
regulamentos intervinham, pois, para fixar preços mínimos de venda. Em certos
casos, com menor frequência, eles fixavam preços máximos para proteger o
consumidor. Os costumes dos padeiros, que já citamos, eram eloquentes quanto a
isso. Eles dizem que os jurados deviam controlar os três tamanhos
regulamentares de pães e as tarifas de venda a eles associadas. Havia uma
relação direta entre o tamanho e o preço, que os artigos 32 e 33, por exemplo,
determinavam.
Caso os pães fossem demasiadamente pequenos – entenda-se: demasiadamente caros
–, eles eram confiscados e doados a Deus, vale dizer, aos pobres. Caso fossem
demasiadamente grandes ou não suficientemente caros, o que é o equivalente,
eles eram ditos meschevés, o que significa aviltados, desacreditados,
vendidos abaixo do preço justo. Segundo Lespinasse, esta era em geral a
situação encontrada pelos jurados na “visita do pão”. O artifício era empregado
para atrair a clientela. No mesmo
espírito, os estatutos dos tecelães declaravam que os preços de venda deviam
ser fixados pelos guardas jurados, e que nenhum mestre tinha o direito de fazer
aliança com outros mestres para vender seus tecidos por uma tarifa inferior. Os textos nos
ensinam, portanto, que o estabelecimento e o controle do justo preço diziam
respeito tanto ao interesse dos consumidores quanto ao das comunidades de
ofícios.
Uma
organização que combatia a livre concorrência
A vida
cotidiana das [corporações] juramentadas mostra reiteradamente como regular com
justiça a concorrência. Não havia livre concorrência. Isso não era possível em
uma sociedade feudal. Conforme vimos, o exercício de um ofício em um território
determinado era fruto de um monopólio. Tratava-se de um privilégio adquirido em
troca de um juramento de fidelidade. Esta era a primeira maneira, a mais
eficaz, de lutar contra a livre concorrência. Quando um ofício era juramentado
em uma cidade, nenhum operário podia praticá-lo livremente.
Se
a questão era claramente definida em relação ao corpo como um todo, o qual era
defendido como um feudo, como se encarava o problema da concorrência em seu
seio? Da mesma maneira como o monopólio territorial era o privilégio de toda
uma comunidade, o monopólio pessoal era o privilégio de um mestre em relação
aos outros. Não podemos passar em revista todos os usos que regulavam as
relações entre mestres. Eles eram extremamente numerosos. Nós já os exploramos,
e muitas das aplicações citadas interferem na questão da concorrência.
Retenhamos sobretudo que numerosos pontos de regulamento combatiam o risco de açambarcamento,
vale dizer, o confisco dos mercados por um ou mais mestres em detrimento dos
outros. Entre os meios utilizados, um dos mais notáveis era a proibição de toda
associação comercial, que então era chamada companhia. Com efeito, os mestres
não tinham direito algum de entrarem num acordo para formar uma sociedade
econômica mais poderosa, em detrimento dos outros mestres. As alianças eram
combatidas em razão de seu caráter especulativo e de uma concorrência que era
julgada desleal para com os artesãos menos afortunados. As companhias
eram igualmente proibidas entre artesãos parisienses e comerciantes vindos de
outra parte. A compra de matérias primas devia ser pública, para evitar, entre
outras coisas, os riscos de acordos preliminares e de açambarcamentos.
Chegando
ao final desta parte, constatamos que a organização dos ofícios sob o reinado
de São Luís não se perdia, nem quanto ao fim da economia, nem quanto aos meios
para alcançá-lo. A máquina era tão bem regulada que podemos afirmar que nada
era deixado ao acaso. Tinha-se então uma perfeita consciência daquilo que
chamamos desde então a Doutrina Social da Igreja. Seus princípios eram
respeitados, pois a autoridade das [corporações] juramentadas devia, assim como
o governo de toda a sociedade, favorecer o bem e combater o mal em seu corpo.
Nas comunidades de ofícios, sociedades econômicas, os jurados faziam, portanto,
de maneira bastante natural, respeitar as regras econômicas da ordem social
cristã. A disciplina não era, no entanto, uma disciplina marcial. Se as
comunidades do século XIII se submetiam de muito bom grado a esses princípios,
é porque eram fecundadas pelo espírito familiar, consuetudinário e cristão
daquela época.
Conclusão
geral
Que
ensinamento devemos extrair do exemplo das comunidades de ofícios do reinado de
São Luís? É preciso, antes de tudo, se impregnar dos princípios da ordem social
cristã e da economia cristã. É necessário, preliminarmente, aceitar o trabalho,
às vezes penoso, de definir as palavras com precisão, recusando assim as
ambiguidades e as falsificações liberais. Poderemos certamente, então,
compreender melhor esses princípios aplicados com tanto dinamismo pelos
operários do século XIII, princípios que tanto desafiam nossos hábitos! É
preciso compreender que a economia cristã é uma economia mortificada. Isto é
conforme ao preceito de Nosso Senhor Jesus Cristo citado em destaque: “Buscai
em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça, e o resto vos será dado por
acréscimo” (Mt 6, 33).
É
evidentemente inútil recalcitrar, os meios que exploramos não pregam meias
medidas: limitação da expansão das empresas, proibição do empréstimo a juros,
das associações comerciais, etc. Tudo isso é bem mortificador para uma natureza
que tem sede de riquezas e de honras. Esta deve, no entanto, submeter-se a tudo
isso.
Como?
Voltemo-nos uma última vez para o século de São Luís. Ele nos ensina como as
comunidades de ofícios puderam ser tão exemplares. Repitamo-lo: é no espírito
consuetudinário, familiar e cristão que nascem a fecundidade e a caridade de
tais corpos. É preciso, portanto, começar por reformar nossas vidas familiares,
aproximarmo-nos do modelo de família nuclear católica e privilegiar o
enraizamento geográfico das linhagens. É preciso reformar nossas famílias, aí
compreendendo o que diz respeito à escolha do nosso ofício, ou do de nossos
filhos, pois não basta nos proclamarmos “corporativistas” (termo, aliás, bem
mal escolhido): é preciso inserir trabalhadores cristãos no que será, um dia,
se Deus quiser, um germe de comunidades de ofícios cristãs. Donde decorre a
conclusão evidente: temos a necessidade de escolas profissionais católicas para
termos, um dia, corpos intermediários católicos. Notemos, por fim, que o catecismo
nos ensina que o cumprimento da lei natural não pode se fazer sem a graça, em
função do pecado original. Não devemos ter a tentação de um naturalismo
político que pretendesse restabelecer uma natureza boa, num primeiro momento,
para que a graça do cristianismo venha fecundá-la em seguida: as comunidades de
ofícios devem ser cristãs para serem realmente boas. A história da evolução das
comunidades, associada à evolução religiosa e política do reino da França, o
mostra. A fecundidade das [corporações] juramentadas do século XIII foi em
grande parte devida à penetração do cristianismo na sociedade. A política
estatista praticada do século XIV ao XVIII por nossos reis, associada ao
humanismo crescente – corolário de uma caridade continuamente decrescente –
arruinaram essa fecundidade. A melhor prova disso está no reforço dos aspectos
disciplinares dos estatutos, por um lado, e na entrada da legislação social
nesses mesmos estatutos, por outro lado. A disciplina nos estatutos de E.
Boileau era certamente exigente, mas tratou-se doravante de se enrijecer nos
privilégios (eis a doença de toda sociedade que reage ao estatismo); tratou-se,
por exemplo, de tornar mais difícil o acesso à posição de mestre. O bom
entendimento entre as hierarquias vacilou, e abriu-se o abismo entre o que mais
tarde seriam chamadas as “classes”. Por fim, enquanto no século XIII
praticava-se a caridade fraterna em um corpo de espírito familiar sem que os
estatutos tivessem de mencionar essas boas obras de maneira sistemática, no século
XVIII, os operários eram obrigados a recorrer a eles.
A
cristandade deve ser restaurada. Voltemo-nos, pois, em direção àqueles que a
edificaram com o auxílio de Deus, para deles aprender o que nós devemos fazer
hoje.
Bibliografia
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